Quimera
Crónica de domingo na Bird.
Falaste na Primavera.
Para mim bastou-me, foi como se a própria palavra te sobrasse pelos ramos e tu mesma florisses.
Aliás, sempre te vi em flor.
Renascida a cada cinza atiçada, não como fénix, mas como uma companhia solitária há muito desejada.
A estrada caminhou ao meu lado, conta-me histórias de várias léguas,
medidas distantes para chegar a quem nos quer hoje como antes.
Eu não falo.
Basta-me ouvir-me e desabafar com o vento, esse, de repente, sem se
mostrar interessado, começa a soprar quando paro de falar, apenas como
quem me diz, vá, continua, estava a ouvir.
Tem uns trejeitos de adulto criança, fingindo ouvir quem de si se fala,
mesmo quando aborrecido desata a brincar a meus pés, mesmo que isso
represente levantar areia e pó para os olhos, trazer consigo gotículas
de um mar que ribomba ali, ao fundo, embrulhado com a praia, ali, ao
fundo, nas mãos petizes da menina que segura a sua saia.
Faltarão menos de quarenta passos, uns quantos sacrifícios agarrados aos
braços, para se erguer no monte aquela que te fará ao nome,
chamar-lhe-ião cruz, mas tu de baptismo nasceste apenas jesus e eu, de
metáfora baptizado, primeiro e último nome da parábola, finjo que não te
ouço quando sobre mim paira o fino fio do aço da espada.
Sim, parece-me que sem nós somos mesmo nada.
Já o vento se espreguiça, adivinho-o entediado, ouviu-me falar dos
passos e das passadas e conhecendo os meus passados, sabe que o primeiro
movimento que farei será permanecer no mesmo local, imóvel, a aguardar
que as estrelas se conjuguem, logo a seguir às vogais, da mesma forma
que estavam quando olhei para cima e vi, claramente, outro eu que para
mim olhava.
Não, parece-me que sem mim não sou mesmo nada.
Se o vento empurra para barlavento estradas que nunca percorrerei,
sobejam-me todos os volumes que cubiquei, terra sobre mim que jorrei,
para continuar no defeso da imaginação e ver surgir um confuso Alma
Grande que traz Garrincha pela mão.
Saído do ventre que me pariu, aterro neste corpo que nunca minh'alma
viu, excepto pelos desacordos e pelas peregrinações que faço entre
versos ou, então, pelos universos, todos eles feito de olhos acessos que
é como quem se vê pela primeira vez visto.
Ah, agora sim, eu sem mim sou isto!
Desajeitadamente arranjo o colarinho e dou uns passos a olhar os pés,
enquanto o piso de madeira não me faltar sei que em ti está quem és, mas
mesmo que me saiba de papel feito, não como avião ou barco, mas como
textura e secura de palavras e vidas, as mesmas que mencionei não serem
partidas, esta respiração arritmada que me escreve entre a parede e a
espada.
Canso-me um pouco da procura, a miragem que a tua ausência tem está em
cada olhar mais profundo que escavo, encontro um ou outro sonho escravo,
sei que me dizem não ter eu cura, pouco me interessa tal agrura, se me
encontram doente, que farão quando virem que é na ausência de tempo que
tudo perdura?
Hoje não, que me cansa a noite e não sou de alterar discursos, mas um
dia, lá para meados de mim, irei acordar o corpo a cada manhã e
esquecido que sou dos sonhos que prometo, irei ver-me pelos meus olhos,
segurando o espelho retrovisor entre os dedos, ah eu não sou cá de
medos, tão pouco segredos, e alcançarei aquele pulsar longínquo que me
faz alimentar o mundo porque as palavras têm pouso, mas quem escreve
sonha voltar novamente vagabundo.
Distraio-me nas cores do poesia, ainda que em prosa, tu abres-me o vidro
e entra por mim o cheiro de ti e de maresia, falas-me nas cores do
arco-íris que viste numa rosa. Sem ti o que faria?
Já tinha esquecido que tinhas-me falado da Primavera...
Sorris. Sorrio. Sem nós a nossa vida era uma quimera.
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