Mulher

Crónica de Domingo na Bird Magazine.
Tens-te metade de mim, na sôfrega parte de me saberes melhor do que a metade do que fui.
A ânsia do regresso ao ventre de um ventre que te pariu.
Mulher, tu és a parte do mundo que nunca te sorriu.
Tu.
Ao longo dos tempos, antes do tempo sequer nascer, se quer nascer dê-se ao tempo o que ele deseja, a vida em forma de bandeja, como um abraço sofrido e contido porque do lado de lá de ti está a metade, aquela que te sorri.
Por entre as melodias de uma canção que se quer silenciosa, não se vá acordar o som que te embala, surgem as vestes de uma nudez que te vai retirando, pele a pela, as camadas onde se escondem as estrelas que te habitam.
Sim.
Em ti o brilho que se quer da noite, do luar, da ausência de um astro que ilumine em torno da órbita que te faz translação, tu, mulher, poema, canção.
Não.
Acordas para o corpo que te veste, vestes-te de estação, qualquer uma, descansas sob a manta de um dia e acordas, novamente, ausente e presente a cada passo descontinuado, tu, mulher, fruto de um amor suado.
Há o reflexo que se reflete em ti, a opinião que opinas sobre ti mesma, a calçada que se estende para que vejas os teus passos sem falsidade e tu, mulher, preocupada com a idade, tu, mulher, tu.
E tens o ventre, o ventre vazio de filhos que não são teus, porque a quem de mulher se faz menina sabe que até o arco-íris tem mãe.
Mulher.
Sabes, sabe-lo, que acima de ti e da imensidão que se estende aquém do infinito há um silêncio onde se encontram os que ouvem, mulher, mãe, sabes, sabe-lo, nunca de teu corpo prisioneira poderá ofegar a saciedade por te querer a sociedade moldar, tu, mulher, ser de vidro a moldar pela forja de teu próprio sopro.
Surgirá um dia, mulher, o ocaso das nossas diferenças, a passadeira amarela que se estende por entre as mimosas floridas, o fluxo de um rio que corre livre contra a corrente, indiferente a quem o navega, na pequenez de um lar que se faz mansão, tu, mulher, fera de suave coração.
Guarda em ti o que de ti alimenta, as frases tantas com que um mísero seguro atormenta, a feminidade de um mundo que se vai a ti, contra ti, porque de ti tem ele, mundo, medo, o segredo de se saber mais fugaz que capaz, de percorrer os caminhos que nos separam, apontando a cada um o outro e o que do outro se faz um, sabendo que na desunião de dois sobra nenhum e, nenhum, é o que somos quando de costela em costela nos fazem díspares, polpa e fruto de uma árvore só.
Faz-me aqui, em mãos de ninguém, o aconchego de nos termos separados pelo amor.
Eu não te sei dizer mulher.
Talvez seja essa a minha dor.
Por isso, a cada curva de ti, quem te faz mulher não é o género, é a constelação de tudo o que és que faz seres um mar de estrelas no céu diurno, as mesmas que iluminam na claridade, aquelas que acarinham nos braços com o mesmo amor os filhos de outras mães.
Mulher, de ti vem o mundo, para onde irá o mundo depois de ti?
Procuramo-nos um no outro sem sabermos que somos os olhos da mesma face, sofremos como quem nunca se amasse. Porquê?
Cegamos na nascença e fazem-nos separados, quando de todos os convites para a vida, o único que procuramos é aquele que nos faça sentir amados.
Mulher. Eu sou tu. Tu és eu.
Existirá alguma indiferença entre nós debaixo deste mesmo céu?

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Pessach

Torrada ou Maria?

Até um dia destes