ALEGRIA
Crónica de Domingo na Bird Magazine.
É estranho, no mínimo, dizer que se perdeu o comboio. Eu perdi-o, embora nunca o tivesse tido, e ele seguiu, caminho fora, carril dentro, enquanto eu me apertava de encontro ao blusão e puxava as abas do casaco para o pescoço, lamentando no momento não ter desfeito a barba, que renasce grisalha, para poder assim sentir o calor do tecido contra o corpo. Sempre se quer outro corpo, mas na ausência deste e porque o vento corre frio, ainda mais apressado, com o qual me rio, fico-me pelo tecido tecido contra mim.
Os chafarizes salpicam-se e algumas infelizes gotas caem fora do pequeno lago que significará algo, talvez para o seu autor, mas que para mim se assemelha a um caminho molhado onde no Inverno nos traz à memória pensamentos de calor e, no Verão, serve para crianças de todas as idades molharem os pés, indumentária e, talvez, alguém enxague a alma.
Passo uma leitura rápida ao que a comunicação social de hoje traz do dia de ontem. A notícia é isto mesmo, tudo aquilo que nem sempre precisamos saber, mas que nos querem lidas, redigidas em ornamentadas celuloses, frutos de cravos agora, quem sabe, correm iluminadas pelo crepúsculo ao qual se assemelha este túnel.
Algum suspira atrás de mim, deduzo que não consiga ler e, pacientemente, afasto-me um passo e alguém passa pelo meu lado direito para estacionar mesmo à minha frente, a meio passo da montra, inclinando-se e levando consigo o oleoso cabelo que escorria pela nuca, orelhas e um pouco do casaco tingido de caspa.
Existirá vida acima desta caverna, o dia parece convidar a uma incursão pela superfície e, por isso, sem atentar ao que o relógio me sussurrava, precipito-me para o chão que me foge debaixo dos pés e ascendo à plataforma, vendo já a errada ou precipitada decisão quando a gargalhada do relógio é audível e me apercebo que está frio, o vento salta entre linhas e, eis a razão do prévio aviso do relógio, mais rápido que ele próprio surge o comboio intercidades, apressado, levando consigo o horário do progresso.
Afundado ainda mais no casaco, ando uns passos até me esconder na perpendicularidade do abrigo ou paragem, vidrado, escondendo-me a tempo da volatilidade do vento deste dia. As paredes vítreas convidam o Sol a entrar e ele não se faz rogado ao passar por entre os bocados de éter que o separam da minha imaginação, aquecendo-me o corpo, o exterior e o interior do meu carnal invólucro. Fecho os olhos, a minha alma agora contida escuta a metálica voz que anuncia o comboio regional e todas as estações onde o mesmo faz paragem, ele, o comboio e o tempo, que tem tendência natural a parar onde nós, quase humanos, podemos ainda maravilhar o sorriso com o olhar.
Para lá do destino, onde as carruagens oscilam e os corpos, se mais houvessem, dançariam uns contra os outros ao ritmo pachorrento do claquear da roda férrea no caminho ferroso, mas agora o que se encontra de carril está ferrugento, um pouco como o tempo, as pessoas. Sei agora que algo de mim volita em torno de um trajecto que nunca percorri, um pouco como um acordo tomado por decisões que não são minhas e as quais não respeito, palavras e acordo.
Ouço, a cada pausa do algoritmo, o debitar assíncrono de palavras que são nome de terras e terras que são nome de casas e casas que têm nelas o nome de gente e gente… gente que embora vente frio não sente, porque de onde as vejo e almejo, há todo um corredor onde percorrem as crianças um caminho para uma escola que já não existe porque as crianças são agora homens, mulheres, diz-me, qual preferes? Escola ou escolha? Embora me suportem as pernas, já eu de mim saio para sentir o calor junto ao rosto, mas agora por trás de uma janela numa linha direita, recta, embalado, não sei se pelo comboio, se pelo vento que me abana os ombros e me diz para acordar.
O comboio passará por Juncal, Pala, Mosteiro, Aregos, Mirão e Ermida. Por mim chegara para me sarar esta ferida, mas na intempestiva viagem a que o tempo me submente, já estou em Barqueiros pouco depois de ouvir Porto de Rei. Sinto ficarem para trás curvas que não curvei, nuvens que não chorei, todos os rostos de quem se levanta na madrugada para ver a mão arada não por terra, mas pelo quente do metal, pelo ensonado destino que se prende desde o jogo de cartas ao arriar cansado, já noite, quando a marmita viajar já de barriga vazia e em casa estiver a recordação de uma mesa com crianças que moram agora, quem sabe, lá para as Franças.
Rede, Caldas de Moledo, Godim, Régua.
Não me atrevo a abrir os olhos, com o medo de me ver sem ter saído do local mantenho os olhos sob as palmas das mãos, estão frias, tiro-as e deixo apenas as pálpebras, já aquecidas, repousarem sobre os globos esverdeados como quem aconchega a roupa da cama a um filho.
Covelinhas, Ferrão, Pinhão, Tua.
Minha era a paixão. O sol ainda continua, oblíquo, a fazer-se sentir em mim e o vermelho que vejo assomar ao meu campo de visão é interrompido por vezes por pessoas, deduzo, que passam à minha frente, imaginando-as eu como as árvores, postes de madeira, velhas casas com velhas à lareira que me fazem sombras e que tento agarrar com a imaginação, mas que se esfumam na viagem de mim.
Alegria trará Ferradosa e esta Vargelas. Comigo estão elas, a erupção de um Vesúvio que arderá a terra, as fragas arrefecidas num metamorfismo natural de frio e calor, de paixão e amor.
Freixo de Numão.
A viagem começa a rarear, o Sol esconde-se atrás de um pilar descaracterizado, alguém pigarreia anunciando presença, mas sei-me de pé e sem lugar ocupar no frio banco. A imaginação que galopava acompanhando o trajecto de uma velha automotora começa a trazer pequenos pensamentos, fragmentos de uma lateralidade a que muitos chamam realidade.
As sombras ora são pessoas ora são paisagem, lentas. O ritmo, o frio que se empoleira ao meu ombro, tudo se mistura. O fumo do cigarro não me parece ser da velha e quase escura carruagem de segunda onde se é permitido fumar. Alguém se senta a meu lado.
Pocinho.
Acabei de me sair.
Há viagens que só fazem sozinho.
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