Imortal idade

Crónica de domingo na Bird Magazine.

Vou combatendo o tempo com a minha ideia de imortalidade.
Nada como chegar aqui, sem nada para escrever, desfolhar ontem um livro ilustrado, com uma história infantil, com moral para gente grandinha, e deixar-me perder nos desenhos.
A cabana de madeira, paredes estreitas, um banco onde repousa um livro, uns óculos, uma vela já derretida, pelo fogo ou pelo sonho, uma manta de retalhos sobre uma cama tosca, uma cadeira para dar descanso à roupa da labuta diária, um suporte e uma bacia, terá água para trazer aos olhos um novo dia, uns chinelos e umas meias dentro deles, tudo sobre um tapete com inscrições que mal cabe no quarto do tamanho da cama.
Há um postigo, mas deverá servir apenas de despertador.
Quem assim se deita, ainda que personagem ilustrada, ainda que imaginada por quem de traços se faz à vida, saberá que a noite é feita de leituras, de letras que se sacodem pelas sombras que a vela atira ao mundo quando respira.
E antes que a imagem se esfumasse, deixei-me entrar hoje pelo monte dentro.
Alças da mochila sobre os ombros, mãos fora dos bolsos a tactear um pouco o escuro, os pinheiros ainda que novos e estreitos deixam pender ramos secos, duros, mas não há mão que tudo tateie e lá passa um ramo, a mais escuro que lusco fusco não dá para perceber se é um pinheiro, eucalipto ou até sobreiro, nem pelo cheiro, porque pelo escuro a andar pouco há a cheirar, o olfacto recolhe-se e certamente lamuria-se pela fraca decisão de quem movimento o corpo.
O tempo encarregou-se de alcatifar o chão com camadas sobrepostas de caruma, erguiço ou chamem-lhe o que quiserem.
As sapatilhas enterram-se, num misto de sujidade e humidade, não lhes chegando isto ainda têm que aguentar os passos tibuteantes que lhes coloco, terreno incerto, passos incautos.
Era capaz de me deixar perder, caminhar indefinidamente pela natureza do que somos, até descobrir um vulto semi perdido que tenta chegar a casa na véspera de Natal, mas de Garrinchas apenas Torga, nada de Miguel, por isso vou procurando a soleira, os degraus, o alpendre que se encosta a uma árvore (pode ser qualquer uma), o tapete feito de pedra irregular que se amola com o passos sem direcção, a porta e as frinchas nesta que deixam ver um pouco da luz da vela ou lareira, o calor que nos move pelas brasas da nossa vida, o levantar do braço e levar a mão ao ferrolho e ouvir, antes de terminar a pergunta, Entra.
Havemos de fazer do corpo a casa, da casa o templo, dos sonhos a realidade tão palpável quanto um cajado, a vara tosca agreste que nos suporta a ignorância e o fiel amigo, animalito de quantas patas, pelos, escamas e asas quiser, que nos guia enquanto os nossos olhos são fechados por quem planta betão onde antes respirava um chão.
E entramos, sem conhecer a noite ou a casa, semicerrando olhos para ver melhor aquilo que nem sempre perscrutamos.
Eu vejo uma cabana, onde entro, adormeço e sonho que tudo isto é um sonho, povoado por paisagens e habitado por pessoas que ainda não se descobriram crianças.
E tu, que vês?
Já tinha tomado o tempo quando se virou a mim a noite.
"É escuro", surgiu a medo.
E eu, tolhido de cansaço, voltei costas à sombra e deixa-a a falar sozinha com o barulho.
"É escuro", continuou.
Mas já lá eu não estava, voltado de costas ao mundo, segurando ao ombro a manta retalhadas de serapilheira com que me cubro, caminhei até deixar para trás o corpo.
"É escuro", murmurou.
"Eu sei"...
"Abre os olhos"

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