Não chove, o mesmo não implica que não caia algo do céu. Estranho ninguém ouvir este ribombar de luz que ofusca e me deixa encharcado de saudade por um longo e fino curso de água, por entre nuvens e névoas, por entre o espaço vazio que ladeia os corpos de quem não se sustenta pela vida. Curioso como os dias se sucedem um após o outro e, no entanto, sinto-o como o mesmo, adormecer e acordar na manhã do mesmo dia, onde apenas a louca vontade do destino, sempre esse desgarrado filho de ninguém, faz mover números do relógio e do calendário, pinta e traça cabelos brancos e rugas negras de quem pensa viver os dias que não passam nem existem. Gostava de saber quem chama à minha porta, sem saber que por detrás dela existe uma outra porta, virada para a rua. E eu, vou sendo fotografia sem legenda, amassado pelo tempo e condimentado pelos dias, até um dia me transformar em pão e assim ascender, em formato de aroma, que é como quem diz ser odor que não se cheira, ser margem sem leito, ser caminho sem trilho, apenas me ver de mim mesmo filho.
Pessach
“Pessach” Crónica do Nada , no Correio do Porto . O puto abana-se uno com a sineta que trina, o braço cansado pende como um ramo seco de árvore que sonha ser galho, anunciando vem aí o compasso!, a opa alva dança e as nuvens riem-se quando o vento lhe atira o resto da brancura pelas costas acima, embrulhando-se na cabeça. Não se demove, continua a badalar num esforço contínuo apenas vencido pela zelosa missão de, além de adolescente, ver chegar ao fim a madrugada procissão, solitária, a cruz acima e abaixo de caminhos, os verdes ao chão, as flores na mão, de cara fechada, uma madeixa dourada rivaliza com o sino zonzo já de tanta sacudidela firme. O vento desiste soturnamente, as nuvens deixam de joeirar a cena e dispersam num certo tom de desprezo, a opa solta-se e cai harmoniosamente sobre as costas arqueadas, mas não sucumbidas, tudo sem que o sino deixasse de tocar. A solenidade foi-se perdendo, sobra agora uma espécie de desejo que tudo termine e possa seguir viagem, arrancar um...
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