A motoreta assobia e geme, à frente, enfrentado o frio e a chuva, segue um rosto rugoso ainda mais enrugado pelos olhos semicerrados, um cigarro apagado ao canto da boca. Atrás, mais de 6 décadas seguem agarradas a si, à cintura, com a cara encostada às costas, protegendo-se do frio e da chuva. Uma mão sobe ao peito e afaga o intrépido condutor. Ele sente, o movimento e o calor, não da mão, mas do gesto e sorri. O cigarro cai. Ele não, sobe, mesmo a tempo de enfrentar um pouco mais de chuva. A motoreta assobia e geme. Sem frio, vento e chuva, os corpos não se aproximam, não se afagam e nós não procuramos aquilo de que somos feitos, amor.
Pessach
“Pessach” Crónica do Nada , no Correio do Porto . O puto abana-se uno com a sineta que trina, o braço cansado pende como um ramo seco de árvore que sonha ser galho, anunciando vem aí o compasso!, a opa alva dança e as nuvens riem-se quando o vento lhe atira o resto da brancura pelas costas acima, embrulhando-se na cabeça. Não se demove, continua a badalar num esforço contínuo apenas vencido pela zelosa missão de, além de adolescente, ver chegar ao fim a madrugada procissão, solitária, a cruz acima e abaixo de caminhos, os verdes ao chão, as flores na mão, de cara fechada, uma madeixa dourada rivaliza com o sino zonzo já de tanta sacudidela firme. O vento desiste soturnamente, as nuvens deixam de joeirar a cena e dispersam num certo tom de desprezo, a opa solta-se e cai harmoniosamente sobre as costas arqueadas, mas não sucumbidas, tudo sem que o sino deixasse de tocar. A solenidade foi-se perdendo, sobra agora uma espécie de desejo que tudo termine e possa seguir viagem, arrancar um...
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