Havemos de voltar ao que fomos, pássaros.
Aproveito uma longa viagem de carro para colocar alguns devaneios em dia, jogar scrable com as nuvens é um deles. Alinho nuvens, primeiro por cores, depois por formatos e acabo por ter um mosaico retalhado que fica muito bem até o vento, aquele desajeitado, vir espreitar e me baralhar tudo. Não adianta ficar chateado com ele, com aquela cara de desalinhado, num misto de vergonha e confusão, é impossível ficar de candeiras às avessas.
A estrada vai gemendo debaixo do carro, range aqui e ali enquanto os pneus, enroladitos neles mesmos, vão desafiando o tempo de chegada previsto com o tempo que eles pensam conseguir fazer.
Acabo de subir a Serra dos Candeeiros, já com a cabeça bem longe das nuvens, quando vejo a surpresa que me prepararam. Um longo tapete, uma estrada no céu, feita por nuvens, grandes e pequenas, com todas as cores distintas existentes no espectro do cinzento, laranja, rosa, branco, preto e um je ne sais quoi de lilás. É um convite. Vejo ao longe uma nuvem, pequenina, distraída. De um salto agarro-me a uma beira, parece algodão, mas com a consistência de uma brisa, dou um impulso e subo. A nuvem acorda, esperneia, sacode-se, deixa cair umas gotitas que se evaporam antes de tocar o chão e finge-se distraída, fazendo de conta, como muito boa gente, que não estou ali. Pelo céu lá vem, não a estrela, mas uma cegonha. Ao passar por mim, que estava escondido na minha melhor imitação de céu, levanto as mãos e agarro-me às patas. Cloud surf. Assim vou, pés fincados na nuvem, qual prancha, qual board, agarrado à cegonha que vai voando, agora mais depressa, arrastando a mim e à nuvem pelo ar.
Todas as estradas vão dar a Roma (excepto as que de lá partem), todas as cegonhas vão dar às nuvens. Ao passar por cima daquele tapete cloudístico deixo-me cair. As vantagens de cair numa estrada de nuvens, não há arranhões, nem queimaduras de asfalto, apenas umas cócegas no nariz por causa das pequenas nuvens que se soltam e me fazem espirrar.
O GPS avisa, "chegou ao seu destino", mas quando falou já eu estava destinado a correr despreocupado sabendo que chegarei ao que já fui, pássaro.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Pessach

Torrada ou Maria?