Oração solitária

Pende-te um rosário invisível
das mãos
e a vida,
contas as contas gastas
enrolando-as
nos dedos cobertos de rugas
e calos,
de os teres sabes já de cor
anos e meses
e dores.

Fogem-te os movimentos
de doenças e maleitas
que não sabes
o nome,
de vago e vazio
teu estômago não sabe
o que é a fome,
trajas de preto no dia
porque a noite te levou a matiz
quanto teu Sol partiu
para longe,
em terra cujo nome não se diz.

Onde guardas a juventude?
Quantas desfolhadas e vindimas
e madrugadas de geada,
quantas?
O teu mundo repousa
nos dias que trazes nos olhos
que inundam
quando o bailado das searas
te faz viver os sonhos,
mas estes são um,
um só,
cravo não florido no jardim das tuas mãos agrestes.

Fechas os olhos,
uma mais
com a força da idade
para que cheguem ao céu,
as voltas do mundo que trazes no coração
são histórias vívidas
que nunca esmaecem,
são atilhos curtidos
que comandam e afagam
cada letra invisível
na minha mão.

Comentários

Anawîm disse…
é poderosa essa "força"
é poderosa... porque é desejo de Paz.. de Amor... de Vida em plenitude...
sejam lá quais forem as formas das "voltas" que ao mundo dá, e o mundo prende, e o ergue a esses céus...

abraço, Miguel, pra ti e pra Ana...
gosto quando passas lá no meu canto...
Há caminhares e caminhares. Há vidas presas de uma prece, vidas esquecidas da vida que dão o que não têm e aguardam o fim pedindo.
Escres tão bem Miguel!....
david santos disse…
Olá, Miguel!
Não é fácil fazer este género de trabalho, mas tu tens aqui um trabalho fantásrico. Mesmo, mesmo fantástico!

Quanto ao poema, todo ele muito emocional, deixa-nos antever que a vida é uma estrada longa. Por vezes, ainda que não pareça, é um viver sem vida. Por vezes também, por uma estrada sem tamanho, sem fim. Como os pensadores pensam, tu não fugiste à regra; e, por isso, o dia em que publicas este tão bom trabalho. Adorei.
Parbéns.

David Santos
Paulo disse…
Os anos deixaram-lhe dores
Nos dedos grosados na água
De lavar a loiça cansaço
De quem educa netos
Às portas da lua bebendo
Café com nossa senhora.

É a avó do meu amigo sem nome
Emoldurada nas teias dum armário
Peça arqueológica de fome
Herança inscrita nas páginas
Dum inventário.


A memória, porém, não se inventa...
pois...ela também é feita de "histórias vividas" e do azul-prata empurrado pelos segredos inquietos .."santuários"...infatigáveis...
Abraço...
Paulo

PS: A sua poesia..tem, lá dentro, pessoas...
Percurso feito de dor e desencanto...
Vida que escorrega por entre os dedos...
Tristeza...

Deixo beijinhos!
MS disse…
Um retrato de tristeza da vida que se esvai...
Como seria bom apaziguar os afectos e as angústias destas pessoas que já nem na prece encontram 'refúgio'! As suas vidas foram uma eterna prece!

Grande sensibilidade para te debruçares com ternura sobre a dor dos mais velhos, esquecidos, omitidos, escarnecidos, indesejados!

Sensibilizada pelo olhar poisado em 'fragmentos'!

Boa-noite!
Silvia Madureira disse…
Digo...

Quanta sabedoria
Tu encerras
Quantas marcas
Te envelhecem o rosto

Marcas
que simbolizam
cada rosa do teu jardim
cada cravo que murchou
cada filho que nasceu
cada filho que se foi...

Como és forte
como és sereno
porque na tua seara
já se passou tanto...

agora simplesmente...
nesta tua simples espera
esperas o que a vida te der!

Continuas como sempre...com escrita de qualidade e muito sensível!
Unknown disse…
Miguel gostaria de te encontrar no meu evento.

Vem!

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