Al Ua

É tão tarde, eu quero dormir, todas as partes do meu corpo querem dormir, mas eu tinha que vir aqui, tinha que vir dizer-te, antes de qualquer pessoa, antes que olhes e vejas a diferença.
Fui com os meus pais a casa. 
Espera. 
Enganei-me, tenho que dar um fio condutor a isto, não que seja primordial, mas para que fiques a saber tanto quanto eu e compreendas como tudo aconteceu. 
A Ana faz anos, aliás, fez, porque é já dia 27 de Setembro, tivemos, a exemplo do ano anterior, a família toda aqui e, na hora de ir embora, aproveitei e fui com os meus pais a casa deles. 
Encontrei, no sábado, umas pilhas para a minha lanterna e e fui munido para a luta com a noite, calções, t-shirt, chinelos de praia e lanterna, a minha companheira quase inseparável. 
Ia à frente, iluminando o caminho, mas nem era preciso, a minha amiga Lua estava no seu esplendor, desconfio que esteja apaixonada, tal é o brilho que ostenta. 
Deixei os meus pais em casa, fui ao computador que está lá para buscar uns ficheiros que precisava e antes de vir embora, fui dar-lhes um beijo de boa-noite à cama. É nestas alturas que parecem meus filhos.
Venho pelo caminho, iluminei apenas uma zona que tem algum mato, mas mesmo assim piquei-me.
Depois desliguei a lanterna, venho imbuído nos meus pensamentos, algo perdido em conjecturas, ideias e ideais, umas válidas e outras que são apenas lixo/ruído mental.
Parei para ver a Lua, fiquei com a sensação que me chamava, mas não, apenas respondeu ao meu apelo e, pela primeira vez, falou comigo. O que conversamos fica entre nós. Desculpa. Sabes que gosto muito de ti, sim, tu, que me lês agora como se estivesses por cima do meu ombro, mas o que a Lua me disse era apenas para mim, como será para ti quando ela te chamar.
As estrelas rodavam na noite, mas a Lua ficou parada, mesmo depois de conversar comigo. Quando eu estava prestes a vir embora, tentando habituar os olhos à escuridão depois de a olhar, ela disse-me: 
- Espera. 
Depois voltou-se para cima, como se falassem com ela, ficou contrafeita, mas decidida, resmungou entre dentes "eu sei, mas é só esta vez".
E, olhando agora para mim, convidou 
- Queres vir?
Fiquei sem compreender o que me dizia, queria ir onde?
- Lá, mais perto das estrelas” e sorriu…
Embora desconfiado, confiando apenas no sorriso dela, respondi:
- Sim, disse-lhe e ela baixou, desceu à Terra:
- Agarra-te bem, sobe por mim - e, pela primeira vez, fui literalmente à Lua, colocando primeiro o pé direito numa pequena cratera, dei um impulso com o pé esquerdo, erguendo-me, agarrei com a mão direita o rebordo de uma outra cratera e fiquei com a mão esquerda a baloiçar, segurando a lanterna.
A Lua começou a subir, primeiro lentamente, depois mais rápido, fazendo-me balançar um pouco o que me assustou, teria sido sensato aceitar subir? Estava tão alto, as luzes da vila, da cidade, do país eram pontos bem mais pequenos que a luz da minha lanterna na noite mal escurecida.
- Larga-os…
Mas que me dizia ela? Se me largar caía e nem lanterna me valia.
- Não, larga-os, esses medos, confia em mim, desfruta a viagem - e deu uma risada, como se eu fosse uma criança traquina e ela se risse das minhas brincadeiras e rebuliços.
Que faria eu sem os meus medos? Tanta companhia me fizeram. Mas obedeci. Também não iria desobedecer a quem me segurava a uns milhares de metros de altura, não é?
Fiquei a olhar apenas para a Lua, o insólito facto de voar com ela, de ir pendurado pelo espaço, percorrendo o Sistema Solar. 
Fiquei assombrado com a quantidade de planetas que ninguém conhece e que guardam mais vida do que mil vezes a vida da Terra! Mas sobre isto, fez-me ela prometer que aguardaria o tempo necessário antes de escrever, até perceber o que era aquilo, a vida noutros locais, noutras vidas. 
Disse-me que aquilo era apenas a nota introdutória ao livro da minha vida. 
Enfim, cá entre nós, a Lua tem com cada coisa que não é mesmo deste mundo, creio que agora percebo porque surge ela apenas à noite, de dia ninguém a levaria a sério.
E voltamos, foi descendo suavemente, até me deixar perto do local onde me tinha encontrado com ela e, nesse momento, eis que chego à parte que te queria contar, ao descer escorreguei e fiquei pendurado pela mão direita, mas o rebordo da cratera não aguentou, deve estar gasto, creio que ela leva muitas mais pessoas, e não aguentando partiu. 
Disse-me para não me preocupar, não era o primeiro a fazê-lo, mas quando ela subiu e retomou o curso natural da sua viagem na noite vi, lá, em determinado momento da sua rotação, falta-lhe um bocado, um bocado que não sendo enorme é visível a olho nu.
Não estranhes, não chames ninguém, sinto-me um pouco envergonhado por ser tão desastrado e ter arrancado um pouco de Lua, desculpa.

Comentários

Silvia Madureira disse…
Lua, feiticeira lua, a noite é toda tua...que seria da noite sem lua? Não consigo imaginar! Os nossos corações chorariam de tristeza e solidão!

Mas...deixando o amor que sinto pela Lua deixa-me dizer que quando fores à Lua eu também queria ir! Que fantástico! Mas...não andes por aí a contar a toda a gente senão todos vão querer ir contigo! E a Lua disse que podias lá voltar?

Deixando o mundo do sonho...que lindo para contar a uma criança antes de adormecer...é daquelas histórias que "prende" qualquer um ...principalmente as crianças, cujos olhos devem perguntar irrequietos...e depois? e depois?

Satisfeita! Sinto-me muito satisfeita com o que li! Mas...tens uma grande mensagem no meio da história: "deixar os medos"! Eu ainda não consegui! Talvez vá pedir ajuda à Lua.

Beijo
foryou disse…
Tomara que haja muitos desastrados a arrancar assim bocados de Lua :)

Às vezes vou até lá largar os meus medos. Outras vou lá colher coragens. E sabes? Essa Lua mesmo com bocados arrancados, continua sempre lá inteirinha para nós :)
Anawîm disse…
tá bem... deixa lá... eu perdoo-te, mas só desta vez...
sim, porque se lhe tirares um bocado de cada vez que tiveres uma aventura destas... onde arranjarei eu depois também assim um "elevador" para ir tomar um banho de estrelas?
eheehheh
sabes?... adorei este bocadinho!

Mas, diz-me:
- A que é que sabe esse bocadinho de lua?

Abraço aluado para ti e para a Ana, que, pelo que vejo tem aniversário no mesmo dia que a minha mãe... engraçado!...
Anónimo disse…
Amigo, fico feliz por ti!
Grande viagem essa.:)
É o que faz teres esse coração de Ouro...
E enquanto esperas pelo livro da tua vida, vai largando os medos daqui, tal como fizeste lá...
Grande Lua... Grande Miguel... Grande Universo!
Bom Domingo.
Bjs de Luz
poca disse…
a tarina abriu-me a porta do teu blog.. :) gostei

"agora percebo porque surge ela apenas à noite, de dia ninguém a levaria a sério…" ui uia

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