É tarde

É tarde, os dias de calor colocam-me num estado de letargia. Confesso que não gosto de calor por várias razões, algumas prendem-se com a estupidez humana de, assim que chega um pouco de calor, os incêndios iniciarem em força.
Tinha, como sempre, várias coisas para escrever, vários estados de alma (gosto desta combinação de palavras, estado de alma) que capto ao longo desta minha passagem pela vida.
Desligo a luz da sala, local onde estou neste momento, a Ana dorme e ouço os acordes iniciais de Telegraph Road, versão original. A única luz que vejo é o brilho do monitor do portátil. As mãos fogem-me da posição correcta das teclas e demoro mais tempo que o usual para escrever palavras diferentes, mas com o mesmo sentimento.
Domingo. É um dia pouco usual para cerimónias fúnebres, no entanto, vicissitudes de ordem religiosa assim o obrigam. Está calor, os óculos escuros fazem mais sentido, o suor escorre-me pela cara e costas. Morreu o Sr. Faria. É “apenas” mais uma pessoa entre as várias que nascem e morrem no mundo. A vida é como um baloiço, que anda demasiado rápido, mal acabamos de nos sentar e dar balanço, já estamos no ar e a saltar para outros baloiços.
(Fenómeno usual nestas alturas de Verão, ouço ao longe o trepidar do fogo de artificio)
Habituei-me a crescer e a ver as mesmas faces, os mesmos sorrisos nas ruas desta minha aldeia. Cresço, a forma de olhar altera-se apenas porque cresço e é, assim, mais fácil olhar de frente, olhos nos olhos, para as pessoas. Habituei-me a percorrer vários caminhos e cumprimentar, ainda que timidamente, pessoas idosas e novas, em lides domésticas ou profissionais… Ao mesmo tempo que caminhava, o meu carácter, a minha forma de ser e estar foi moldando-se, adaptando-se às ruas e sombras das figueiras e castanheiros. Nestes momentos, em que morre alguém, não penso nas incongruências das vidas, na inconstância da nossa forma de estar cá. Penso, sim, que os nossos olhos ainda estão muito habituados a ver a noite, por isso mesmo não vemos o dia com outros olhos.
Emociono-me com a guarda de honra dos bombeiros, eu que sou um bombeiro que nunca o serei, com a presença de várias pessoas, com o depositar das bandeiras das associações sobre o caixão e o olhar cansado dos familiares.
A esta hora já o Sr. Faria me acena por detrás de uma nuvem. Traz os mesmos óculos, o mesmo chapéu (que levantava em cumprimento), a mesma barriga, braços e pernas, tudo é igual. Perguntei-lhe se tinha pena de ir já, apesar da idade, pois sempre pensei que mesmo não assustando, a morte levava o olhar perdido no capuz negro. Olhou em redor, sacudiu uma nuvem que passava para ver melhor e sorriu, piscou-me o olho e, soprando baixinho ao meu ouvido, disse-me “a vista daqui é mais bonita!”
Fiquei parado, enquanto entravam e saiam do cemitério, gostei das letras que estão no portão, são de 1906, quando Cête ainda se escrevia Cette. Invariavelmente, as pessoas visitam os seus familiares já falecidos, fazem do cemitério um ponto de encontro com a saudade…
É tarde, estou cansado, dói-me a cabeça e queria escrever tanto sobre isto… Vim para aqui com a ideia de deitar algumas histórias a dormir na cama dos meus sonhos, mas as palavras, como sempre, possuem vida própria e decidem como, quando e onde sair e eu, que rio sozinho para as nuvens e vejo amigos que nunca tive ou que já estão do lado de lá das estrelas, obedeço à vontade destes sorrisos que grafam pelas minhas mãos.

A Ana deu-me o DVD “Ainda há pastores?”. Vi apenas dois pequenos trechos e emocionei-me. Tenho que ganhar coragem para o ver, porque aquela vida, aquela sinceridade no olhar das gentes puras faz-me sentir seara, trigo e centeio. Aquelas serras são da minha alma um devaneio.

E, sem que o tempo mo dissesse, fiz já um ano de casado… Esta coisa a que chamam tempo, passa rápido demais, passa bem, mas rápido…
Agora que o sono chega, sonhos acordam… Não escrevo mais, nem tão pouco irei rever o que escrevi, gosto das palavras saídas tal como vieram ao mundo, simples, com ou sem qualidade, mas minhas.
Deixo alguns sonhos gravados na parede na sala, sei que os pinto com uma tinta que só eu possuo e só eu poderei ler. Talvez amanhã me sente e, fechando os olhos, leia aquilo que não escrevo agora.
Agora vou deitar-me, esperar uns momentos para que a sonolência me invada lentamente, suba pelos pés até todo eu ser dormência, até eu me ver no meu corpo de criança crescida e o sussurro da vida me dizer: “anda, acorda para o sonho” e, dando-me a mão, me levar para lá das estrelas, onde todos os meus amigos, que conheci e que ainda hei-de conhecer recebem quem salta dos baloiços.

Os sonhos não são nossos, flutuam e pousam apenas onde e quando querem e eu admiro-os por isso, apesar de querer deitá-los a dormir nos meus braços e levá-los pelo mundo, espalhando-os pelas vidas, como alguém que semeia…


Comentários

Anónimo disse…
Este texto revela um sentimento de tranquilidade, um sentimento de paz de quem está de bem com a vida. Aliás quem se emociona e quem dignifica as coisas mais simples da vida terá que ter paz de espírito...
Escreves muito bem...poderias escrever um livro...não sei se gostavas ou se até já escreveste...
Parabéns pelos anos de casado e eu fico feliz por saber que apesar das relações serem cada vez mais superficiais e as pessoas fugirem a compromissos...ainda existem pessoas que encaram uma relação com toda a seriedade que esta merece (penso eu)...
Continua...silvia
Anónimo disse…
Bonitas palavras!
Parabéns pelo vosso primeiro ano! :)

Uma óptima semana! *.*
Anónimo disse…
Sabes Miguel...
É engraçado... cada vez que aqui venho sou reportada para outras paragens...
As palavras que utilizas, a forma como as encadeias é de tal forma sublime que me transmite uma tranquilidade extrema...
Gosto muito de te ler.
"Ainda há pastores?" vi trechos também.. lindíssimo... eleva-nos a alma!
Continua a escrever.
Virei sempre aqui, apesar de andar muito desligada!

Um beijo imenso =^.^=
Anónimo disse…
Olá de novo...

Só agora reparei que um rascunho do meu blog tinha uma mensagem tua...sabes esse blog foi apenas um exercício de aprendizagem para uma Oficina de Formação que frequentei que visava a aprendizagem de técnicas com o auxílio de informática para melhorar o nosso desempenho profissional como professores...
Obrigado pelo link ...fiquei surpresa...como descobris-te? Esse blog vai ficar estagnado até eu encontrar uma colocação onde possa fazer uso desta ferramenta na prática lectiva.
A intenção era permitir aos alunos aceder a fichas de trabalho e a outros documentos com base na elaboração de um blog...pode ser que um dia implemente isto em alguma turma.
Este ano já não deu para implementar porque só no final da Oficina é que fiquei com vagos conhecimentos...quando as aulas já tinham terminado...
A Oficina visava a utilização da plataforma Moodle...mas senti que ainda tinha muito para aprender...
Miguel tu estás sempre lá...Obrigado.
Anónimo disse…
:)

=^.^=

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