A chuva no alpendre

Gostava de possuir algum tipo de conexão entre o cérebro e o computador... Bem, pelo menos a uma máquina de escrever...
Chove bastante, coisa habitual no mês de Abril, se não estivéssemos nós em plena fase de Revolução Ambiental... Estive mais de meia hora sentado, com o computador ligado, a pensar no que iria escrever ou como iria escrever, organizar algumas coisas que tenho para dizer... Fiquei em paz comigo e com os pensamentos, porque chove e de alguma forma a chuva leva os meus pensamentos...
Estava para me levantar e escrever, no entanto surgiu um velho desconhecido, com a mão aberta e, nela, algumas nuvens que pensei serem algodão doce. Perguntou-me:
- Isto é seu? - enquanto estendia a mão para mim.
Fiquei a olhar para ele, sem saber o que me perguntava, tão pouco sabia quem era e o que queria de mim, já para não referir que é meia-noite e que além do sono, não é habitual alguém desconhecido entrar-me pela janela, com umas bolas de algodão - ups - nuvens.
- Isto, os pensamentos! - estendia ainda mais a mão, com cara impaciente, como se o facto de eu não saber o que era aquilo
- Os pensamentos? - é verdade, eram pensamentos.
- Sim, são seus?
Fiquei parado, devo ter ficado tão atónito que ele abanou a cabeça e dirigiu-se para mim a sorrir. Sentou-se na cadeira a meu lado, sobre a Super Interessante, PC Mais, Anuário de Fórmula de 1989, uma folha para a pontuação do torneio de malhão e o Autosport desta semana.
- Isto... Isto é seu... Vocês não têm cuidado com o que pensam e, depois, lançam isto para a atmosfera - endoidou, pensei - Não sou doido - não acredito, leu-me o pensamento!, pensei de novo - Sim li e tenho-o aqui - e mostrou-me uma nova nuvem.
- Mas, quem é o senhor?
- Ah, pouco interessa o nome, eu apareço de vez em quando, há quem me veja, há quem me sinta como uma leve brisa na face, outros como um aperto na cabeça, outros ainda como um arrepio e outros também como uma memória que os faz sorrir... Eu vejo todos os vossos pensamentos. Vocês pensam, eles saem de vós e colam-se nesta matriz que vos rodeia. Lentamente crescem e materializam-se, vocês começam a sentir o que pensaram, para depois, mais tarde, sentirem a repercussão física desse pensamento...
- Pois... Eu lembrei-me de pensar no totoloto...
- Só materializas o que acreditas!
- Pois... E quem acredita em guerra? Fome? Ganância?
- Vocês... Acreditam profundamente no que dizem... Conheces a frase "Isto está cada vez pior" ou "Não tenho sorte nenhuma"? Não querem que aconteça, mas acreditam, profundamente, no vosso infortúnio, na mesquinhes humana como vossa herança, que teimam em não transformar em algo mais, como te hei-de dizer, mais fraterno... Não se trata de rezar o que quer que seja... Rezar sim, mas com convicção... - e pensei eu "eu sei lá rezar!" - e achas que as pessoas têm que rezar? O defeito das palavras é estarem já bastante impregnadas no colectivo, na matriz, dizes uma palavra e o que surge é tudo o que está agregado à palavra, tenha ela 10 minutos ou 1.000.000 de anos...
Parou um pouco a olhar para as nuvens que tinha na mão... Suspirou.
- Têm que compreender a importância do pensamento, mas a importância para o bem ou, como gosto de dizer, o melhor para todos e não o melhor para o nosso umbigo...
- Que faço eu com os pensamentos? Não penso? É impossível... Mesmo antes de pensar, já estou a pensar no que vou pensar... É difícil.
- Sim, é. E aí reside o belo de tudo isto, porque quando estás a pensar no que vais pensar, estás já a fazer um esforço para alterares a qualidade do que pensas, e isso é sentido, acreditas no que fazes e aí está a coerência de todo o processo... Involuntariamente, estás já a acreditar que podes pensar melhor... Olha, em tudo o que fizeres, vê bem o que pensas, o que sentes e como reages. O mediatismo parece pedir às pessoas que ajam apenas quando forem notadas, mas não é assim, deves agir sempre e em qualquer ocasião pensando, conscientemente, no melhor para todos, independentemente do que esse "melhor" seja... Estão de tal forma habituados a ajuizar, a julgar de imediato, que nem percebem a repercussão disso em vocês, do quanto atraem dos pensamentos dessas situações... Os pensamentos atraem pensamentos (e tudo neles agregado, o potencial emocional e a possibilidade futura do que sucederá), tem cuidado no que pensas e evocas...
Lembrei-me de lhe perguntar sobre a saudade, mas não o fiz...
- A saudade? - pois, o pensamento... - A saudade é boa, quando utilizada correctamente. A saudade pode ser sadia, podemos a qualquer momento pensar, enviar os nossos melhores pensamentos para as pessoas que estão longe, noutra cidade, noutro país, até noutra dimensão... Saudade sadia é pensares em alguém, mas com amor, desejando o melhor, fazendo repercutir fora de ti o quanto de importante essa pessoa foi e é para ti... Fora desta matriz, destes pensamentos, emoções e acções, existe um mundo novo... Porque não começares a furar um pouco desta matriz? É um trabalho silencioso, começa-se por cultivar em nós o sorriso, a paciência, a certeza de existir algo mais, depois, onde quer que estejas podes tornar-te um embaixador de pensamentos mais leves, menos densos, para que esses possam perfurar a matriz e deixar algum sol (outros pensamentos) entrar... E quando muitos pensarem diferente, de forma mais harmoniosa, mais fraterna, então já entrarão novos pensamentos em número suficiente para que outros, mais distraídos, possam desfrutar igualmente desses novos paradigmas.
Levantou-se, fechou a mão e quando a abriu só tinha uma pequena esfera luminosa, que se apagou como se fosse uma brasa que perde o calor, e desapareceu...
- Vou andando.
E foi.
Fiquei como estou agora, calado, atónito, sem perceber muito bem o que se passou.
Ficou apenas este barulho da chuva no alpendre...

Comentários

Anónimo disse…
«Fiquei como estou agora, calado, atónito, sem perceber muito bem o que se passou.»

...mas adorei. e não consigo dizer muito mais. estou quase como o vídeo abaixo. sem mais palavras que 'adorei'. :)))

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