(III) A estrela
Os candeeiros despertavam do seu descanso diurno. A hora exacta, era vê-los acordarem, piscando os olhos, e depois começarem a ver, primeiro lentamente, semicerrados, como que se habituando ao crepúsculo. Tinham mau feitio, tal como muitos de nós quando acordam, e enquanto não os via brilhar com todo o seu vigor ninguém falava com eles, nem entre eles mesmos.
A rua possuía um fascínio estranho, encantador. Longe dos caminhos de aldeia, orlados por muros de pedra e musgo, suportados aqui e além por um pastor que, encostado ao muro, com a perna flectida e o pé apoiado no muro, resguardado do frio pelo seu capote de palha e as melenas comprimidas pela boina, velha, quase sempre castanha, comia uma bucha e bebia um gole de vinho. Das ruas que galgou, nenhuma era como esta, pacata, inclinada, com um piso regular de alcatrão. Não se vislumbravam casas, era apenas uma estrada, no meio de algures, com muros altos e baixos, que indicavam diferentes propriedades, diferentes proprietários. A ausência de regos para a água descer livremente, mas confinada, fazia com que qualquer alma que se aventurasse a andar num dia destes, de chuva intensa, acabasse por ficar com os pés mais lavados que o habitual.
Não fazia a mínima ideia de como teria chegado ali. Do alto da rua via os candeeiros, espreguiçando–se, brilhando cada vez com mais veemência, mas ainda assim muito mortiços. A rua terminava, saindo do horizonte numa curva para a direita onde, finalmente, à mesma direita, surgia uma casa branca, velha, com um fiozinho de fumo que fazia crescer água na boca pelo imaginar de uma lareira, mãos estendidas aquecendo–se e falando com o fogo.
Inspirou prolongadamente, de olhos fechados, enchendo os pulmões com o ar gélido do lento cair da noite e pensando como seria bom que o Sol brilhasse um pouco, antes de rumar a outras paragens. Abriu os olhos e, no final da rua, antes desta fugir à visão para a direita, levantavam–se vários eucaliptos, como por magia, e de folhas verdes, muito verdes, completamente molhadas, reflectia o brilho esmaecido de um Sol cansado de um dia de labuta. A visão era estonteante, como o são todas as nossas visões de sonhos, os eucaliptos ondulavam lentamente ao sabor do vento e as folhas competiam entre si para ver qual a que ficava mais à frente, a que recebia antecipadamente os raios de Sol. Enquanto bailavam reflectiam a luz do Sol adquirindo ainda uma tonalidade mais escura, parecia daquelas aves que ele viu uma vez numa quinta. Bem, não avistou a ave, apenas adivinhou como seria, pois apenas tinha visto uma pena, de várias cores, que brilhava consoante olhávamos para ela de diferentes ângulos.
O Sol acabou por não resistir e adormeceu, talvez para acordar noutras partes do mundo, onde as pessoas andam de cabeça para baixo. Os eucaliptos pararam de ondular e as folhas deixaram–se cair numa hibernação rápida e fugidia. Era a noite que avançava, ouvia–se os passos da mesma e, de quando em vez, um suspiro. A respiração era acompanhada pelo vapor que saía da boca e, admirado por não sentir frio, começou a descer a rua com um ânimo que talvez a ausência do alforge patrocinasse. De novo o suspiro…
Ao passar pelo primeiro candeeiro, olhou para cima. Era um poste antigo, de cimento, bastante alto, que tinha uma placa, roída nalgumas zonas pela ferrugem, com bastante sujidade e que não permitia ler o que quer que estivesse escrito. Tirou a mão direita do bolso e começou a esfregar a placa, raspando–a com as unhas. Ouviu novamente o suspiro, seguido de um riso contido. Parou de raspar e olhou em redor, nada, absolutamente nada, excepto o negro da noite que empurrava o azul, agora escuro, do céu diurno. Continuou a raspar e, lentamente, surgiram umas letras pretas sobre um fundo amarelo ferrugento e cansado. Olhou as unhas, estavam sujas e partidas, mas não lhe doíam, pegou então na manga da camisola (amarela, de malha, com um nome escrito, bordado a lã azul grossa – Alcance) e agarrou–a com os dedos, prendendo–a ao punho e a metade da palma da mão. Retomou a actividade, mau grado a sujidade e o estrago na camisola, as letras surgiram todas: “Perigo de morte!”.
Saltou para trás, como pudera ser tão imprudente...
– Sujeito a morrer aqui, num sítio que nem conheço – pensou em voz alta
Novamente o suspiro, profundo, e uma voz soturna, grave, que parecia entrar no âmago do seu ser:
– Não te preocupes, não morrerás…
Olhou em redor, nada se vislumbrava, apenas o céu bem negro e estrelas que tentavam encontrar uma aberta entre as nuvens para espreitarem o que se passava neste mundo.
– Aqui, em cima – ouviu novamente.
Olhou para cima e assustou–se, incrédulo. Quem lhe falava estava no candeeiro.
– Não, não estou no candeeiro – responderam – sou o candeeiro…
Fixou o olhar, franziu os olhos e viu, ainda que pouco nitidamente, dois olhos atrás da luminosidade.
– Aproxima–te, não mordo… – riu sozinho do que acabara de dizer – Habituei–me a ver–vos passar, ouvir–vos, que na impossibilidade de vos imitar os gestos, copiei as vossas falas… Foi assim que aprendi a falar… Eu e todos os outros que vês pela rua.
Olhou para a rua, todos os candeeiros assumiram um ângulo inusitado, que os permitia ver este candeeiro e ele mesmo.
– Eu… – começou, sem saber o que dizer – Eu nunca vi nada assim…
– Nunca viste um candeeiro?
– Não, quer dizer, sim!
– Então…
– Nunca tinha visto no mundo um candeeiro assim, falante
– Oh, ficarias admirado com as coisas que não sabes e que nunca viste… – riu – Daqui vemos coisas que ninguém vê!
– Sim?
– Claro rapaz, e aquelas amigas ali, curiosas, vês? – ergueu aquilo a que podemos chamar de face para o céu – As tais a que vocês chamam de estrelas.
Olhou para o céu e, de facto, via-as atarefas, quase irritadas, esticando uns invisíveis braços que tentavam, à força, abrir espaço entre as nuvens. O vento soprava, subiu a rua rapidamente e parou por momentos junto do candeeiro. Tinha um rosto de criança, um sorriso terno e um olhar profundo que parecia atravessá-lo de um lado ao outro.
- Vejo que deixaram vir mais um! – disse o vento para o candeeiro, enquanto apontava com o olhar para o rapaz.
- Sim, tem sido assim ultimamente. Alguém tem trabalhado bem – piscou o olho ao vento.
- Rapaz, desejo-te uma boa estada aqui, aproveita! – falou, já em voz alta, enquanto corria agora para cima, empurrando as nuvens umas contra as outras, num jogo de gato e rato, abrindo brechas aqui e ali que as estrelas tentavam aproveitar.
- Ei, tu é que és o vento? – gritou o rapaz em direcção às nuvens, com as mãos em concha em frente à boca, para que o som se propagasse mais longe, como lhe tinha explicado certa vez um pastor.
- Sim! – respondeu uma voz ao seu lado.
O susto foi tão grande que quase caiu. Sentiu-se corar quando o vento soltou uma sonora gargalhada de criança e, ao longo da rua, todos os candeeiros sorriam.
Ao lado dele, cara a cara, estava o mesmo rosto de criança, o vento.
- Mas… Tu estavas ali! – apontou para o céu, na esperança de não o ver lá, mas via-o soprando, empurrando as nuvens.
Ficou muito sério a olhar para o vento, que nada mais era que um rosto de criança transparente, a sorrir, com um olhar cor de folha de eucalipto quando fecha os olhos ao brilho do Sol.
- Eu estou em todo o lado! – e perante o ar incrédulo do rapaz – Ainda não sabias disto?
- Ele chegou aqui há pouco tempo, deve ser a primeira vez que cá vem sem ser a dormir – explicou o candeeiro no seu tom pausado
- Ah! Então está tudo explicado! – sorriu de novo o vento – Vais ter tempo para descobrir isso…
O rapaz sorriu perante a certeza do vento, de facto, tudo o que ele queria saber era em que sítio estava, quem eram estas pessoas…
– Pessoas? Mas nós lá somos parecidos com pessoas? – interpelou o vento, mais uma vez parecia que lhe liam o pensamento.
- Não, não lemos – respondeu o candeeiro, enquanto o vento anuía com a cabeça, sorrindo – Olha ao redor de ti, o que vês?
Ele olhou, não via nada extraordinário, tirando o facto de ter uma camisola de lã, velha, amarela, com letras escritas a azul.
- Não, olha ao redor de ti, não para ti…- sorria o candeeiro.
E ele olhou… Imediatamente a seu lado estava um pequeno ponto luminoso, que pairava. Parecia uma partícula qualquer ondulando sobre água expelida na vertical, tal como vira uma vez na casa de um velho louco, onde tinha entregado uma estranha carta num envelope em forma de peixe, ele chamava àquilo, onde os peixes nadavam presos e tristes, de aquário.
- O que é isto? – pensou, enquanto mirava aquele estranho ponto luminoso.
Não teria passado uma fracção de segundo e um novo ponto luminoso soltou-se dele e foi pairar junto ao anterior.
- Estás a descobrir, é giro, mas tenho que ir – disse o vento, piscando o seu olho de menino ao candeeiro – aqui este teu amigo tem muito que fazer!
E arrancou, desta vez para uma outra nuvem que se desvanecia. Com mãos de artesão moldou a nuvem, com um pouco de outras nuvens.
- Que estranho – pensou novamente o rapaz.
- Sim, sou estranho! Mas apenas até te habituares à ideia! – sorriu de novo o vento, desta vez com a cara colada à cara do rapaz. Tão próximo que a respiração, ofegante, do rapaz, fazia com que a sua cara se dissipasse nas expirações, para se reagrupar novamente quando o rapaz inspirava.
- Olha – continuou – agora não posso mesmo conversar contigo, mas para teres uma ideia, vês aquelas estrelas? Algumas tentam ver-nos, outras vêm-nos já. A mim compete-me, aqui, nesta rua, zelar pela ordem natural das coisas.
O candeeiro anuía lentamente, o que fazia com que a rua de iluminasse intermitentemente à medida que ele se movia.
- Àquelas estrelas que não nos vêm ainda, permito apenas, com as minhas amigas nuvens, vislumbrar um pouco do que será, ou seremos.
- E as outras? – perguntou o rapaz.
- As outras sabem quem somos, o que somos, onde estamos e como estamos.
O rapazito abanava a cabeça, não compreendia palavra por palavra, mas encontrava algum sentido nas palavras e nos pontos luminosos que saíam do vento.
- E o que acontece quando as outras estrelas sabem quem vocês são, o que são, onde estão e como estão? – perguntou.
- Bem, aí elas já não são elas, nem nós somos nós... – continuou o candeeiro.
- Sim, é verdade, quando isso acontece…
- E não acontece ao acaso… - rematou o candeeiro
- Sim, nada é ao acaso. Quando acontece, já elas não são elas, nem nós somos nós. Elas são nós mesmos, percebes? Nós… - tentava encontrar as palavras certas, olhando para o candeeiro como que pedindo ajuda.
Por fim o candeeiro ajudou, dizendo:
- Quando nós temos consciência de nós mesmos, não precisamos de procurar. Quando nós nos descobrimos e, por conseguinte, descobrimos os outros, por muito longe que estejam, acabamos por ser apenas um…
- Não compreendo… - respondeu, desconsolado, o rapaz.
- É normal rapaz – disse o vento, enquanto descrevia uma volta completa em torno do rapaz – as palavras são sempre palavras, a nossa interpretação delas é e será sempre diferente.
- Mas o que existe, isso ninguém nega, olha para mim – dizia o candeeiro – as pessoas vêm a luz e o que dizem?
- Não sei…
- Sabes sim… Por exemplo, uns descrevem como brilhante, outros como ofuscante, outros como quente, outros como fria, outros como interminável, outros como intermitente…
- Pois…
- E se para me descreverem encontram termos tão distintos, imagina para tentar descrever isto que esse malandro te disse – e sorriu, olhando para o vento, que lhe fez uma careta divertida.
- Quer dizer, que agora que eu vos encontrei, vocês são eu?
- É parecido, vejo que começas a compreender! – respondeu, rindo, o vento.
- Pois… Então, se eu estiver numa outra estrela, vocês são sempre vocês?
- Melhor!!! – respondia o candeeiro – Tu, mesmo estando noutra estrela, vais estar aqui connosco e noutros locais ainda!
- Mas, como? Quando?
- Uma coisa de cada vez rapaz… A ansiedade não te permite pensar…
- Olha para as estrelas, o que vês?
- Vejo um ponto de luz no céu…
- Não, o que digo é para tu pensares na estrela… Seres a estrela, o que vês?
O rapaz fez um cara engraçada, com os olhos fechados franzia a testa, num esforço aparente de alguma forma mágica ir até á estrela.
- Calma, a continuar assim ainda te acontece algo que não queres! – Disse o vento, soltando uma sonora gargalhada,
- Não consigo – disse o rapaz.
- Consegues sim – tranquilizou o candeeiro - não é uma questão de estares lá, é apenas uma questão de seres!
Tornou a fechar os olhos, pensou no que lhe tinham dito, o ser e estar, o estar e não ser. De repente, sentiu que via, parecia-lhe estar a visualizar as nuvens, as estrelas e, de repente, a cara sorridente do vento surgiu mesmo à sua frente e perguntou:
- Então, já chegaste? – e deu uma gargalhada.
- Vá lá, deixa-o fazer sossegado – dizia o candeeiro, no seu tom conciliador, enquanto o rapaz tinha caído no chão com o susto e, só depois, compreendeu que estava de facto com os olhos fechados.
Deixou-se estar sentado, esticou as pernas e com as mãos no chão, inclinado para trás, fechou os olhos. Queria verificar se podia voltar a ver, de olhos fechados, o que tinha visto… Não desejou pensar o que quer que fosse, deixou apenas que o seu olhar viajasse para além dele mesmo. Lentamente, pensou-se sem corpo, tal era a leveza que sentia, e desejou estar em pé. E assim foi, ficou em pé, olhando para o candeeiro e o vento que sorria. Este último deixou de ter cara e, simplesmente, desenhou-se a si mesmo como uma mão com um polegar em sinal afirmativo e encorajador.
Sentia-se em pé, mas não estava em pé, na realidade, não tinha qualquer corpo, estava ali, a pairar, olhando as estrelas. De repente, ao seu comando, começou a viajar, no sentido ascendente, a uma velocidade vertiginosa. Passou pelas nuvens, que pareciam não o impedir, entrando e saindo delas com uma simplicidade notável. As estrelas começaram a aproximar-se dele, sentia o calor, um calor íntimo que não queimava. Começou a ver todo o universo passar por ele, a uma velocidade estonteante. As estrelas não eram estrelas, eram apenas um pequeno traço luminoso, semelhante às estrelas cadentes que tinha visto. Não conseguia perceber onde estava, pois no exacto momento em que pensava em tal, era de imediato acelerado para outro local e assim sucessivamente, até todas as estrelas serem riscos de luz na noite e estes riscos de luz eram tantos e tão intensos que começaram a sobrepor-se ao escuro da noite. A noite começava a ganhar uma tonalidade esbranquiçada, por vezes de um azul-púrpura. Sentia que se podia deslocar em todos os sentidos, em todas as direcções, não havia local onde não pudesse ir, pois já lá estava, sentia-se parado e ao mesmo tempo a uma velocidade imensa… Parado e ao mesmo tempo a uma velocidade imensa… Deslocando-se, parado…De facto, a velocidade era tanta que ele conseguia estar em dois locais ao mesmo tempo… Não, três locais…Mais locais… Começou a adquirir um sentimento imenso de felicidade, não se sentia movimentar, mas sentia-se, ao mesmo tempo, em todos os locais, em todas as estrelas, em todas as pessoas… Por momentos viu-se a dormir junto a uma lareira. Viu pelos olhos de um padre, uma visão diferente da compaixão e, de repente, um homem agradecia-lhe intimamente ter lido uma carta à sua esposa que ainda era viva. Num estranho momento, viu-se como sendo um pai natal de chocolate nas mãos de uma criança e sentiu, na sua verdadeira essência, uma ponta de tristeza por não poder nem saber escrever tudo o que vislumbrava…
Parou de pensar e de estar, agora era, em toda a concepção da palavra simplesmente era. Via… Ou melhor, sentia estar num local banhado por uma luminosidade estranha, que não iluminava, de todas as cores e ao mesmo tempo escura, consciente e ao mesmo tempo indiferente… Percepcionava em todas as direcções, via como se tivesse olhos em todo o seu corpo, como se ele próprio fosse um olho… Sem qualquer percepção de peso, de corpo, deixou-se estar ali, sentindo e vivendo cada momento num espaço de tempo que não existia. Para ele tudo parecia já ter decorrido, toda a história conhecia, todas as histórias que pudesse inventar, mesmo ele sentia-se como se não existisse sequer, como se fosse sempre assim…Abaixo de si, logo atrás do seu limite de percepção enquanto ser ou entidade, ou fosse lá o que fosse, sentia que era todas as pessoas, que ele era de facto muitas pessoas, muitos seres e, paradoxalmente, todas as pessoas, todos os seres, tudo o que ele via era ele mesmo… Sentiu que não poderia sentir mais nada, não existia espaço para outro sentimento que o calor ameno que o amparava, que a própria essência que respirava, que a própria energia que o constituía e a tudo o que o cercava naquele bocadinho de nada…
– Será isto o amor? – Deve haver mais do que isto… – pensou – O que é isto?
Continuava ali, a pairar, numa experiência tão fantástica como banal, tão real como imaginária… De repente, todo o cenário começou a movimentar-se e ele sentia o processo inverso ao de ter chegado ali, junto daquela estrela… À medida que as estrelas começavam a ser traços no céu, olhou uma última vez para aquela luz estranha que o tinha acolhido por breves momentos de uma eternidade. Sentiu que lhe piscava o olho, não viu, apenas sentiu… Sentiu que dentro dele algo crescia incomensuravelmente, infinitamente, para jamais o abandonar…Deixou-se cair no vazio, com um sorriso, feliz... Enquanto todas as estrelas pareciam abrandar e retomar o seu local no firmamento, ele ia abrindo lentamente os olhos… Uma lágrima fina escorreu lentamente pela face.
- Fácil, não é? – Perguntou o candeeiro, mas o rapaz parecia ainda atordoado, como se fosse possível resumir toda uma experiência a um corpo, a um pequeno conjunto de moléculas.
- Sim… Não sei bem onde estive…
Ainda na mesma posição, demonstrou algum cansaço e começou por tirar as mãos do chão.
Apesar da água das chuvas escorrer pela estrada, ele não sentia frio, nem tão pouco estava molhado, parecia simplesmente que a água passava por ele, por dentro dele, sem o molhar.
- Tenho frio… - disse, com um ar cansado e confuso, sem perceber ainda tudo o que presenciara, nem tão pouco onde estava e com quem estava.
- É estranho… - respondeu o candeeiro em tom preocupado – Hum…
Fez uma pausa, pensando e, depois, com um sorriso de quem tinha compreendido algo, disse:
- Fecha os olhos, dorme, estás cansado…
O rapaz deitou-se, a água corria por ele e por dentro dele. Mudou de posição…
Abriu um pouco as pálpebras, à frente dele uma fogueira ia perdendo vigor. Com o braço estendido agarrou uma videira velha e seca, que jazia no chão da eira, e empurrou um pequeno tronco para a fogueira. Esta foi ganhando vida lentamente, aos poucos libertava mais calor e mais luz. Deitou a mão sobre as pernas e ajustou a camisola amarela… Atrás dele pairavam milhões de partículas douradas e prateadas. Começava a ficar, agora, mais quente e aconchegado. Fechou os olhos…
Em poucos segundos levantou-se, mas não se mexiam as roupas, nem tão pouco o corpo no chão. Ficou em pé, olhou para trás e viu-se a ele mesmo, deitado, dormindo…
Deu um passo em frente, à sua direita encontrava-se a criança que lhe tinha dado a camisola de lã.
Olhou para mim e, sorrindo, fez um gesto com a mão sobre a cabeça, no que parecia indicar o acto de colocar um chapéu… Não compreendi e ele, lentamente, aproximou-se do monitor, bafejou-o e com o dedo estendido escreveu: chapéu…
Sorri, tirei o chapéu do bolso que a criança me tinha dado e coloquei-o à minha esquerda. Ele sorriu igualmente, saiu do monitor, piscou-me o olho enquanto passava por mim e desapareceu…
Desliguei o computador e liberto da luminosidade do monitor vi ao longe o que parecia ser uma estrela, sem brilho definido, a sorrir…
A rua possuía um fascínio estranho, encantador. Longe dos caminhos de aldeia, orlados por muros de pedra e musgo, suportados aqui e além por um pastor que, encostado ao muro, com a perna flectida e o pé apoiado no muro, resguardado do frio pelo seu capote de palha e as melenas comprimidas pela boina, velha, quase sempre castanha, comia uma bucha e bebia um gole de vinho. Das ruas que galgou, nenhuma era como esta, pacata, inclinada, com um piso regular de alcatrão. Não se vislumbravam casas, era apenas uma estrada, no meio de algures, com muros altos e baixos, que indicavam diferentes propriedades, diferentes proprietários. A ausência de regos para a água descer livremente, mas confinada, fazia com que qualquer alma que se aventurasse a andar num dia destes, de chuva intensa, acabasse por ficar com os pés mais lavados que o habitual.
Não fazia a mínima ideia de como teria chegado ali. Do alto da rua via os candeeiros, espreguiçando–se, brilhando cada vez com mais veemência, mas ainda assim muito mortiços. A rua terminava, saindo do horizonte numa curva para a direita onde, finalmente, à mesma direita, surgia uma casa branca, velha, com um fiozinho de fumo que fazia crescer água na boca pelo imaginar de uma lareira, mãos estendidas aquecendo–se e falando com o fogo.
Inspirou prolongadamente, de olhos fechados, enchendo os pulmões com o ar gélido do lento cair da noite e pensando como seria bom que o Sol brilhasse um pouco, antes de rumar a outras paragens. Abriu os olhos e, no final da rua, antes desta fugir à visão para a direita, levantavam–se vários eucaliptos, como por magia, e de folhas verdes, muito verdes, completamente molhadas, reflectia o brilho esmaecido de um Sol cansado de um dia de labuta. A visão era estonteante, como o são todas as nossas visões de sonhos, os eucaliptos ondulavam lentamente ao sabor do vento e as folhas competiam entre si para ver qual a que ficava mais à frente, a que recebia antecipadamente os raios de Sol. Enquanto bailavam reflectiam a luz do Sol adquirindo ainda uma tonalidade mais escura, parecia daquelas aves que ele viu uma vez numa quinta. Bem, não avistou a ave, apenas adivinhou como seria, pois apenas tinha visto uma pena, de várias cores, que brilhava consoante olhávamos para ela de diferentes ângulos.
O Sol acabou por não resistir e adormeceu, talvez para acordar noutras partes do mundo, onde as pessoas andam de cabeça para baixo. Os eucaliptos pararam de ondular e as folhas deixaram–se cair numa hibernação rápida e fugidia. Era a noite que avançava, ouvia–se os passos da mesma e, de quando em vez, um suspiro. A respiração era acompanhada pelo vapor que saía da boca e, admirado por não sentir frio, começou a descer a rua com um ânimo que talvez a ausência do alforge patrocinasse. De novo o suspiro…
Ao passar pelo primeiro candeeiro, olhou para cima. Era um poste antigo, de cimento, bastante alto, que tinha uma placa, roída nalgumas zonas pela ferrugem, com bastante sujidade e que não permitia ler o que quer que estivesse escrito. Tirou a mão direita do bolso e começou a esfregar a placa, raspando–a com as unhas. Ouviu novamente o suspiro, seguido de um riso contido. Parou de raspar e olhou em redor, nada, absolutamente nada, excepto o negro da noite que empurrava o azul, agora escuro, do céu diurno. Continuou a raspar e, lentamente, surgiram umas letras pretas sobre um fundo amarelo ferrugento e cansado. Olhou as unhas, estavam sujas e partidas, mas não lhe doíam, pegou então na manga da camisola (amarela, de malha, com um nome escrito, bordado a lã azul grossa – Alcance) e agarrou–a com os dedos, prendendo–a ao punho e a metade da palma da mão. Retomou a actividade, mau grado a sujidade e o estrago na camisola, as letras surgiram todas: “Perigo de morte!”.
Saltou para trás, como pudera ser tão imprudente...
– Sujeito a morrer aqui, num sítio que nem conheço – pensou em voz alta
Novamente o suspiro, profundo, e uma voz soturna, grave, que parecia entrar no âmago do seu ser:
– Não te preocupes, não morrerás…
Olhou em redor, nada se vislumbrava, apenas o céu bem negro e estrelas que tentavam encontrar uma aberta entre as nuvens para espreitarem o que se passava neste mundo.
– Aqui, em cima – ouviu novamente.
Olhou para cima e assustou–se, incrédulo. Quem lhe falava estava no candeeiro.
– Não, não estou no candeeiro – responderam – sou o candeeiro…
Fixou o olhar, franziu os olhos e viu, ainda que pouco nitidamente, dois olhos atrás da luminosidade.
– Aproxima–te, não mordo… – riu sozinho do que acabara de dizer – Habituei–me a ver–vos passar, ouvir–vos, que na impossibilidade de vos imitar os gestos, copiei as vossas falas… Foi assim que aprendi a falar… Eu e todos os outros que vês pela rua.
Olhou para a rua, todos os candeeiros assumiram um ângulo inusitado, que os permitia ver este candeeiro e ele mesmo.
– Eu… – começou, sem saber o que dizer – Eu nunca vi nada assim…
– Nunca viste um candeeiro?
– Não, quer dizer, sim!
– Então…
– Nunca tinha visto no mundo um candeeiro assim, falante
– Oh, ficarias admirado com as coisas que não sabes e que nunca viste… – riu – Daqui vemos coisas que ninguém vê!
– Sim?
– Claro rapaz, e aquelas amigas ali, curiosas, vês? – ergueu aquilo a que podemos chamar de face para o céu – As tais a que vocês chamam de estrelas.
Olhou para o céu e, de facto, via-as atarefas, quase irritadas, esticando uns invisíveis braços que tentavam, à força, abrir espaço entre as nuvens. O vento soprava, subiu a rua rapidamente e parou por momentos junto do candeeiro. Tinha um rosto de criança, um sorriso terno e um olhar profundo que parecia atravessá-lo de um lado ao outro.
- Vejo que deixaram vir mais um! – disse o vento para o candeeiro, enquanto apontava com o olhar para o rapaz.
- Sim, tem sido assim ultimamente. Alguém tem trabalhado bem – piscou o olho ao vento.
- Rapaz, desejo-te uma boa estada aqui, aproveita! – falou, já em voz alta, enquanto corria agora para cima, empurrando as nuvens umas contra as outras, num jogo de gato e rato, abrindo brechas aqui e ali que as estrelas tentavam aproveitar.
- Ei, tu é que és o vento? – gritou o rapaz em direcção às nuvens, com as mãos em concha em frente à boca, para que o som se propagasse mais longe, como lhe tinha explicado certa vez um pastor.
- Sim! – respondeu uma voz ao seu lado.
O susto foi tão grande que quase caiu. Sentiu-se corar quando o vento soltou uma sonora gargalhada de criança e, ao longo da rua, todos os candeeiros sorriam.
Ao lado dele, cara a cara, estava o mesmo rosto de criança, o vento.
- Mas… Tu estavas ali! – apontou para o céu, na esperança de não o ver lá, mas via-o soprando, empurrando as nuvens.
Ficou muito sério a olhar para o vento, que nada mais era que um rosto de criança transparente, a sorrir, com um olhar cor de folha de eucalipto quando fecha os olhos ao brilho do Sol.
- Eu estou em todo o lado! – e perante o ar incrédulo do rapaz – Ainda não sabias disto?
- Ele chegou aqui há pouco tempo, deve ser a primeira vez que cá vem sem ser a dormir – explicou o candeeiro no seu tom pausado
- Ah! Então está tudo explicado! – sorriu de novo o vento – Vais ter tempo para descobrir isso…
O rapaz sorriu perante a certeza do vento, de facto, tudo o que ele queria saber era em que sítio estava, quem eram estas pessoas…
– Pessoas? Mas nós lá somos parecidos com pessoas? – interpelou o vento, mais uma vez parecia que lhe liam o pensamento.
- Não, não lemos – respondeu o candeeiro, enquanto o vento anuía com a cabeça, sorrindo – Olha ao redor de ti, o que vês?
Ele olhou, não via nada extraordinário, tirando o facto de ter uma camisola de lã, velha, amarela, com letras escritas a azul.
- Não, olha ao redor de ti, não para ti…- sorria o candeeiro.
E ele olhou… Imediatamente a seu lado estava um pequeno ponto luminoso, que pairava. Parecia uma partícula qualquer ondulando sobre água expelida na vertical, tal como vira uma vez na casa de um velho louco, onde tinha entregado uma estranha carta num envelope em forma de peixe, ele chamava àquilo, onde os peixes nadavam presos e tristes, de aquário.
- O que é isto? – pensou, enquanto mirava aquele estranho ponto luminoso.
Não teria passado uma fracção de segundo e um novo ponto luminoso soltou-se dele e foi pairar junto ao anterior.
- Estás a descobrir, é giro, mas tenho que ir – disse o vento, piscando o seu olho de menino ao candeeiro – aqui este teu amigo tem muito que fazer!
E arrancou, desta vez para uma outra nuvem que se desvanecia. Com mãos de artesão moldou a nuvem, com um pouco de outras nuvens.
- Que estranho – pensou novamente o rapaz.
- Sim, sou estranho! Mas apenas até te habituares à ideia! – sorriu de novo o vento, desta vez com a cara colada à cara do rapaz. Tão próximo que a respiração, ofegante, do rapaz, fazia com que a sua cara se dissipasse nas expirações, para se reagrupar novamente quando o rapaz inspirava.
- Olha – continuou – agora não posso mesmo conversar contigo, mas para teres uma ideia, vês aquelas estrelas? Algumas tentam ver-nos, outras vêm-nos já. A mim compete-me, aqui, nesta rua, zelar pela ordem natural das coisas.
O candeeiro anuía lentamente, o que fazia com que a rua de iluminasse intermitentemente à medida que ele se movia.
- Àquelas estrelas que não nos vêm ainda, permito apenas, com as minhas amigas nuvens, vislumbrar um pouco do que será, ou seremos.
- E as outras? – perguntou o rapaz.
- As outras sabem quem somos, o que somos, onde estamos e como estamos.
O rapazito abanava a cabeça, não compreendia palavra por palavra, mas encontrava algum sentido nas palavras e nos pontos luminosos que saíam do vento.
- E o que acontece quando as outras estrelas sabem quem vocês são, o que são, onde estão e como estão? – perguntou.
- Bem, aí elas já não são elas, nem nós somos nós... – continuou o candeeiro.
- Sim, é verdade, quando isso acontece…
- E não acontece ao acaso… - rematou o candeeiro
- Sim, nada é ao acaso. Quando acontece, já elas não são elas, nem nós somos nós. Elas são nós mesmos, percebes? Nós… - tentava encontrar as palavras certas, olhando para o candeeiro como que pedindo ajuda.
Por fim o candeeiro ajudou, dizendo:
- Quando nós temos consciência de nós mesmos, não precisamos de procurar. Quando nós nos descobrimos e, por conseguinte, descobrimos os outros, por muito longe que estejam, acabamos por ser apenas um…
- Não compreendo… - respondeu, desconsolado, o rapaz.
- É normal rapaz – disse o vento, enquanto descrevia uma volta completa em torno do rapaz – as palavras são sempre palavras, a nossa interpretação delas é e será sempre diferente.
- Mas o que existe, isso ninguém nega, olha para mim – dizia o candeeiro – as pessoas vêm a luz e o que dizem?
- Não sei…
- Sabes sim… Por exemplo, uns descrevem como brilhante, outros como ofuscante, outros como quente, outros como fria, outros como interminável, outros como intermitente…
- Pois…
- E se para me descreverem encontram termos tão distintos, imagina para tentar descrever isto que esse malandro te disse – e sorriu, olhando para o vento, que lhe fez uma careta divertida.
- Quer dizer, que agora que eu vos encontrei, vocês são eu?
- É parecido, vejo que começas a compreender! – respondeu, rindo, o vento.
- Pois… Então, se eu estiver numa outra estrela, vocês são sempre vocês?
- Melhor!!! – respondia o candeeiro – Tu, mesmo estando noutra estrela, vais estar aqui connosco e noutros locais ainda!
- Mas, como? Quando?
- Uma coisa de cada vez rapaz… A ansiedade não te permite pensar…
- Olha para as estrelas, o que vês?
- Vejo um ponto de luz no céu…
- Não, o que digo é para tu pensares na estrela… Seres a estrela, o que vês?
O rapaz fez um cara engraçada, com os olhos fechados franzia a testa, num esforço aparente de alguma forma mágica ir até á estrela.
- Calma, a continuar assim ainda te acontece algo que não queres! – Disse o vento, soltando uma sonora gargalhada,
- Não consigo – disse o rapaz.
- Consegues sim – tranquilizou o candeeiro - não é uma questão de estares lá, é apenas uma questão de seres!
Tornou a fechar os olhos, pensou no que lhe tinham dito, o ser e estar, o estar e não ser. De repente, sentiu que via, parecia-lhe estar a visualizar as nuvens, as estrelas e, de repente, a cara sorridente do vento surgiu mesmo à sua frente e perguntou:
- Então, já chegaste? – e deu uma gargalhada.
- Vá lá, deixa-o fazer sossegado – dizia o candeeiro, no seu tom conciliador, enquanto o rapaz tinha caído no chão com o susto e, só depois, compreendeu que estava de facto com os olhos fechados.
Deixou-se estar sentado, esticou as pernas e com as mãos no chão, inclinado para trás, fechou os olhos. Queria verificar se podia voltar a ver, de olhos fechados, o que tinha visto… Não desejou pensar o que quer que fosse, deixou apenas que o seu olhar viajasse para além dele mesmo. Lentamente, pensou-se sem corpo, tal era a leveza que sentia, e desejou estar em pé. E assim foi, ficou em pé, olhando para o candeeiro e o vento que sorria. Este último deixou de ter cara e, simplesmente, desenhou-se a si mesmo como uma mão com um polegar em sinal afirmativo e encorajador.
Sentia-se em pé, mas não estava em pé, na realidade, não tinha qualquer corpo, estava ali, a pairar, olhando as estrelas. De repente, ao seu comando, começou a viajar, no sentido ascendente, a uma velocidade vertiginosa. Passou pelas nuvens, que pareciam não o impedir, entrando e saindo delas com uma simplicidade notável. As estrelas começaram a aproximar-se dele, sentia o calor, um calor íntimo que não queimava. Começou a ver todo o universo passar por ele, a uma velocidade estonteante. As estrelas não eram estrelas, eram apenas um pequeno traço luminoso, semelhante às estrelas cadentes que tinha visto. Não conseguia perceber onde estava, pois no exacto momento em que pensava em tal, era de imediato acelerado para outro local e assim sucessivamente, até todas as estrelas serem riscos de luz na noite e estes riscos de luz eram tantos e tão intensos que começaram a sobrepor-se ao escuro da noite. A noite começava a ganhar uma tonalidade esbranquiçada, por vezes de um azul-púrpura. Sentia que se podia deslocar em todos os sentidos, em todas as direcções, não havia local onde não pudesse ir, pois já lá estava, sentia-se parado e ao mesmo tempo a uma velocidade imensa… Parado e ao mesmo tempo a uma velocidade imensa… Deslocando-se, parado…De facto, a velocidade era tanta que ele conseguia estar em dois locais ao mesmo tempo… Não, três locais…Mais locais… Começou a adquirir um sentimento imenso de felicidade, não se sentia movimentar, mas sentia-se, ao mesmo tempo, em todos os locais, em todas as estrelas, em todas as pessoas… Por momentos viu-se a dormir junto a uma lareira. Viu pelos olhos de um padre, uma visão diferente da compaixão e, de repente, um homem agradecia-lhe intimamente ter lido uma carta à sua esposa que ainda era viva. Num estranho momento, viu-se como sendo um pai natal de chocolate nas mãos de uma criança e sentiu, na sua verdadeira essência, uma ponta de tristeza por não poder nem saber escrever tudo o que vislumbrava…
Parou de pensar e de estar, agora era, em toda a concepção da palavra simplesmente era. Via… Ou melhor, sentia estar num local banhado por uma luminosidade estranha, que não iluminava, de todas as cores e ao mesmo tempo escura, consciente e ao mesmo tempo indiferente… Percepcionava em todas as direcções, via como se tivesse olhos em todo o seu corpo, como se ele próprio fosse um olho… Sem qualquer percepção de peso, de corpo, deixou-se estar ali, sentindo e vivendo cada momento num espaço de tempo que não existia. Para ele tudo parecia já ter decorrido, toda a história conhecia, todas as histórias que pudesse inventar, mesmo ele sentia-se como se não existisse sequer, como se fosse sempre assim…Abaixo de si, logo atrás do seu limite de percepção enquanto ser ou entidade, ou fosse lá o que fosse, sentia que era todas as pessoas, que ele era de facto muitas pessoas, muitos seres e, paradoxalmente, todas as pessoas, todos os seres, tudo o que ele via era ele mesmo… Sentiu que não poderia sentir mais nada, não existia espaço para outro sentimento que o calor ameno que o amparava, que a própria essência que respirava, que a própria energia que o constituía e a tudo o que o cercava naquele bocadinho de nada…
– Será isto o amor? – Deve haver mais do que isto… – pensou – O que é isto?
Continuava ali, a pairar, numa experiência tão fantástica como banal, tão real como imaginária… De repente, todo o cenário começou a movimentar-se e ele sentia o processo inverso ao de ter chegado ali, junto daquela estrela… À medida que as estrelas começavam a ser traços no céu, olhou uma última vez para aquela luz estranha que o tinha acolhido por breves momentos de uma eternidade. Sentiu que lhe piscava o olho, não viu, apenas sentiu… Sentiu que dentro dele algo crescia incomensuravelmente, infinitamente, para jamais o abandonar…Deixou-se cair no vazio, com um sorriso, feliz... Enquanto todas as estrelas pareciam abrandar e retomar o seu local no firmamento, ele ia abrindo lentamente os olhos… Uma lágrima fina escorreu lentamente pela face.
- Fácil, não é? – Perguntou o candeeiro, mas o rapaz parecia ainda atordoado, como se fosse possível resumir toda uma experiência a um corpo, a um pequeno conjunto de moléculas.
- Sim… Não sei bem onde estive…
Ainda na mesma posição, demonstrou algum cansaço e começou por tirar as mãos do chão.
Apesar da água das chuvas escorrer pela estrada, ele não sentia frio, nem tão pouco estava molhado, parecia simplesmente que a água passava por ele, por dentro dele, sem o molhar.
- Tenho frio… - disse, com um ar cansado e confuso, sem perceber ainda tudo o que presenciara, nem tão pouco onde estava e com quem estava.
- É estranho… - respondeu o candeeiro em tom preocupado – Hum…
Fez uma pausa, pensando e, depois, com um sorriso de quem tinha compreendido algo, disse:
- Fecha os olhos, dorme, estás cansado…
O rapaz deitou-se, a água corria por ele e por dentro dele. Mudou de posição…
Abriu um pouco as pálpebras, à frente dele uma fogueira ia perdendo vigor. Com o braço estendido agarrou uma videira velha e seca, que jazia no chão da eira, e empurrou um pequeno tronco para a fogueira. Esta foi ganhando vida lentamente, aos poucos libertava mais calor e mais luz. Deitou a mão sobre as pernas e ajustou a camisola amarela… Atrás dele pairavam milhões de partículas douradas e prateadas. Começava a ficar, agora, mais quente e aconchegado. Fechou os olhos…
Em poucos segundos levantou-se, mas não se mexiam as roupas, nem tão pouco o corpo no chão. Ficou em pé, olhou para trás e viu-se a ele mesmo, deitado, dormindo…
Deu um passo em frente, à sua direita encontrava-se a criança que lhe tinha dado a camisola de lã.
Olhou para mim e, sorrindo, fez um gesto com a mão sobre a cabeça, no que parecia indicar o acto de colocar um chapéu… Não compreendi e ele, lentamente, aproximou-se do monitor, bafejou-o e com o dedo estendido escreveu: chapéu…
Sorri, tirei o chapéu do bolso que a criança me tinha dado e coloquei-o à minha esquerda. Ele sorriu igualmente, saiu do monitor, piscou-me o olho enquanto passava por mim e desapareceu…
Desliguei o computador e liberto da luminosidade do monitor vi ao longe o que parecia ser uma estrela, sem brilho definido, a sorrir…
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