(II) O carteiro

A rua foi feita com pedras altas, num mosaico irregular, que o passar dos tempos, dos cascos do gado e dos carros de bois transformou em lisas pedras, carregadas de musgo onde as grandes rodas de madeira, orladas a ferro pelas gerações de latoeiros da aldeia, não calcavam.

Subia-a um vulto carregado com um alforge, sorridente, escorregando aqui e ali no musgo. A população espera-o em dias alternados. Nem sempre vem quando desejam e, quando vem, carrega às costas notícias boas e más, sonhos e pesadelos.

À medida que sobe a rua e rasga uma espécie de neblina levanta a cabeça, solta um suspiro ao constatar que ainda lhe faltam mais degraus e muitas mais casas… Bem, estas não contam, algumas estão desabitadas, mesmo por fantasmas, que gente não mora mais aqui, apenas sonhos passados, festas vividas, desfolhadas e beijos escondidos, tímidos, tempos idos…

Nesta aldeia é já conhecido, apareceu de um dia para o outro, com o saco às costas, perguntando por moradores que tinham seu nome escrito no destinatário de envelopes velhos, amarelecidos pelo tempo e pelo couro do alforge, que algumas cartas tinham aspecto de terem viajado mais que cem anos… É alto, bastante alto para os corpos curvados pela lide do tempo e dos campos, pela enxada e foice, o cabelo sai-lhe do chapéu de carteiro, meio grisalho, que se mostra mais escuro quando tira o chapéu para, por cordialidade, saudar as pessoas com quem se cruza.

Visitou a primeira pessoa há anos, ou décadas, já não há certeza, a história é contada como se tivesse passado apenas uma ou duas semanas… Entrou no centro da aldeia, um pequeno aglomerado de casas à volta de uma capela, com um cruzeiro no centro da praça. O fontanário estava, então, povoado de mulheres, novas e idosas, com mãos frias e vermelhas de bater a roupa na água fria. Não escapou aos olhares malandros das raparigas mais novas quando se abeirou delas, pousou o saco, deixando cair algumas cartas e um embrulho atado com uma fita muito tosca e amassada, e disse ao mesmo tempo que tirava o chapéu:
- Bom dia minhas senhoras!

O pudor de então não permitia uma resposta imediata, directa, mas passados alguns segundos, a senhora mais velha, antipática, de rugas formadas na testa por tanto franzir as sobrancelhas, num olhar ameaçador, respondeu:
- Bom dia…
O carteiro enfiou o chapéu na cabeça e disse:
- Sou o novo carteiro, ando um pouco perdido, parti a minha bicicleta atrás, antes da ponte, e por sorte não me parti a mim também – sorriu – procuro uma aldeia chamada Dalmas, pode dizer-me onde fica?


A mulher olhava ainda de desdém, desconfiada:
- Para que quer saber? Aqui não passa um carteiro há anos, nem há quem nos escreva mais… Está enganado certamente…

As mulheres e meninas pareciam esconder-se atrás desta mulher mais velha, com medo de esta lhes ver um olhar mais furtivo para o carteiro.
- Pois, acredito que sim, mas tenho aqui algumas centenas de cartas e este pacote, como pode ver, para entregar e só me pagam quando isto entregar… Procuro agora uma senhora chamada – parou e olhou melhor para a carta tentando compreender o que estava escrito - Alice Martins, creio que é este o nome…
- Sou eu, mas ninguém tenho que me escreva! E mesmo que tivesse, não sei ler, isso era tarefa do meu marido, que é ido agora, para onde todos iremos… - respondeu com azedume e tentando terminar por ali a conversa.
- A carta tem selo de há 8 anos atrás e o remetente é um senhor, creio que se chama Artur Martins…

O olhar da mulher ficou vago e distante, parecia atingida por um murro no peito, deixou de respirar por instantes e todas as outras sussurraram entre elas…
- Esse… - falou com o olhar no chão – Esse… era o meu marido…

Com um sorriso, o carteiro estendeu o braço à senhora, entregando a carta, ao que esta a recebeu e a manteve na palma das mãos, olhando, com os olhos a encherem-se de lágrimas.

O carteiro ficou em pé, olhando para ela, esperando que a emoção passasse para perguntar por outros destinatários…
- O senhor… - balbuciou – o senhor não se importa de ma ler? Nenhuma de nós sabe ler… Apenas escrevemos o nosso nome… Algumas de nós apenas assinamos com uma cruz… - e estendeu-lhe a carta ainda por abrir.
- Certamente, minha senhora – pegou novamente na carta e sorriu – Quer que a leia aqui?
- Não, não… Vamos até ali – e apontou com a cabeça para o cruzeiro do centro da praça.

Andaram um pouco, o carteiro arrastou o seu alforge e a mulher andava e limpava as mãos ao avental. Chegados ao cruzeiro, a mulher sentou-se e o carteiro, após pousar o alforge, endireitou o chapéu, retocou com a mão o cabelo que saía do chapéu, endireitou o casaco e abriu lentamente a carta. À medida que o fazia, a mulher soluçava baixinho, espaçadamente, enquanto lhe caía uma ou outra lágrima pelo rosto, que ela limpava com uma ponta do avental.

Pigarreou um pouco, clareando a voz e começou a ler:
“Querida Alice, o quanto lamento eu em vida não ter sorrido mais, não te ter amado como sei agora que é possível… Já lá vão uns anos e não sei se existe forma de te falar, de te ver…” O carteiro cambaleou um pouco, parecia cansado, a sua visão turvou-se um pouco e ele teve que se sentar, fazendo-o no chão. Baixou um pouco a cabeça, o que permitiu esconder os seus olhos turvos, quase brancos por uma névoa que os cobria agora. Continuou a ler:

“Continuas bela como sempre, mas a tua amargura sente-se até aqui onde estou e mesmo nosso filho, que morreu tão cedo, antes da sua primeira comunhão, se compadece de tua dor… Eu não tenho muito mais tempo para escrever e falar, não é sempre que o podemos fazer… Estou bem, feliz, tão liberto da vida e da dor que foi sair daí, mas agora vejo que tudo é passageiro, que o que fica somos nós, o amor… Olha, o amor aqui é tudo o que existe, aqui respira-se amor, vive-se amor, é um amor diferente do que conhecemos… Eu queria dizer-te tantas coisas, mas não tenho tempo…”

A mulher ouvia de olhos fechados, as lágrimas continuavam a correr, baixou a cabeça e pousou-a nos braços que estavam cruzados sobre os joelhos.

“Peço-te que recebes estas minha palavras com carinho e amor… Peço-te, imploro-te, que olhes para todas as pessoas como se olhasses para mim, que gostasses das outras pessoas como se fossem os teus mais queridos filhos, como se me visses em cada uma das pessoas… Sei que é difícil, mas acredita em mim, fá-lo por ti mesma e pelos outros, para que se sintam amados, libertos dos seus medos… Quem sabe eu estarei num desses olhares? Agora tenho que ir… Estou aqui à tua espera, aguardo ansiosamente a altura em que nos possamos olhar olhos nos olhos e te possa dar um abraço… Um abraço à nossa maneira… Até lá, do teu marido, Artur.”

O carteiro olhou em frente, para a senhora, compreendeu que estava sentado e levantou-se rapidamente, abanando um pouco a cabeça como que a sacudir pensamentos, limpou as calças e fechou cuidadosamente a carta. Deu dois pequenos passos e apontou a carta à senhora que o olhava, ainda de olhos húmidos, com os braços cruzados sobre as pernas. Esticou o braço e pegou na carta.
- Obrigada…
- Oh, não tem mal, faço isto muitas vezes por esses montes adiante… É a minha vida…
- Não compreendo… Parece-me que perdi tanto tempo… Com…
- Nunca perdemos tempo… Diz-me a vida que ganhamos sempre alguma experiência, que aprendemos sempre algo.
- Mas eu perdi muito tempo, já lá vão alguns anos que ele partiu… Eu apenas tenho acumulado tristeza, raiva… Não consigo olhar nos olhos ninguém, fico com raiva da felicidade dos outros… - parou um pouco, baixou a cabeça – Já olhou para aquelas pobres coitadas? Nenhuma delas namora, pelo menos que eu saiba, nenhuma delas se atreve a sorrir quando estou com elas… Acho que têm medo… Não sei… Acho que me tornei amarga, raivosa com a vida… - falava e abanava a cabeça, como que não querendo acreditar no que se tinha transformado…
- Ainda está a tempo de mudar… De sorrir… De amar…
- Estou nada… Estou velha… Cansada…
- Não está não… Olhe… Eu era para ser carteiro desde que nasci, sabia que era isto, que tinha que entregar cartas, falar e ouvir com as pessoas… Mas nunca o fiz… Passados alguns anos encontrei uma pessoa que me entregou uma carta, uma carta velha, muito velha… Nessa carta diziam-me que se eu tivesse falado, se eu tivesse dito o que sabia, que essa pessoa já seria mais feliz, teria agido de outra forma… - encolheu os ombros e sorriu - Acho que cada um de nós encontra forma de fazer o que tem que fazer, sabe? Às vezes não o fazemos por orgulho, por comodidade, mas todos sabemos o que temos que fazer…

Olhou por ele abaixo, fez um movimento com os braços como que exibindo o seu uniforme de carteiro:
- Acha que eu queria andar assim? Agora nem bicicleta tenho… Caminho por aí com cartas que ninguém lê… Mas sou feliz… Há qualquer coisa nessas cartas que me faz ver que somos mais que palavras, somos acção, e que esta acção só nós sabemos qual é… - parou um pouco – Como é que hei-de dizer… Acho que nós temos que fazer pelos outros, tudo o que faríamos por nós…

Levantou o alforge e colocou-o ao ombro, endireitou o chapéu:
- Pode ser que um dia destes, alguém me entregue uma carta assim… - sorriu – Tenha um bom dia!

Partiu em direcção à capela, tinha uma carta a entregar e sabia que encontraria a pessoa ali, na capela, não viesse no destinatário “Padre…”

Chegou à capela e pousou o alforge, olhou para trás e ficou a contemplar a senhora a quem lera a carta. Esta tinha-se levantado e caminhava em direcção ao fontanário. Levava a carta na mão e quando se abeirou de uma das raparigas esta encolheu-se, talvez com medo… A senhora Alice levantou os braços e deu-lhe um abraço forte, demorado, e quando a largou beijou-a na testa, com muito carinho… A surpresa parecia ser enorme e a repercussão desse abraço viu-se nas restantes raparigas que abraçaram Alice em conjunto… Era capaz de jurar que a própria água parecia mais límpida e Alice parecia mais nova…

Tirou a carta do alforge e caminhou em direcção à porta da capela… Gostou da capela, além da pequena igreja, possuía à frente desta um coberto, com bancos de pedra e uma antiga pia baptismal à direita da porta de entrada. Não gostou de ver as grades em forma de lança…
- Jovem, posso ajudá-lo? – perguntou uma voz muito grave.

Assustou-se, estava perdido a olhar para as grades.
- Sim, por favor, procuro o padre Bernardo, tenho uma carta para ele.
- Uma carta? Mas aqui, meu jovem, já não há carteiro que chegue… Há anos…
- Pois agora há - e sorriu, tirando o chapéu e exibindo orgulhosamente o símbolo dos carteiros.
- E diz-me que a carta é para o padre Bernardo?
- Sim, é.
- Ele não está, mas posso entregá-la pessoalmente, se assim desejar.

Pensou um pouco, as ordens que tinha era para entregar pessoalmente ao destinatário… Enfiou novamente o chapéu e sorriu, como se uma ideia o tivesse atingido.
- Está bem, se não for incómodo. – E entregou a carta ao padre.

Pegou no alforge novamente e caminhou para fora do coberto, dirigindo-se em direcção ao cruzeiro. Parou quando ouviu a porta da capela fechar e voltou para trás. Sentou-se num dos bancos frios de pedra. Por momentos sentiu a tentação de colocar algumas das cartas que trazia sobre o banco para não ter tanto frio, mas afastou o pensamento com um sorriso.

Olhava atentamente à volta, havia qualquer coisa de acolhedor naquela pequena aldeia, qualquer coisa de agradável.

Não teriam passado cinco minutos quando ouviu a porta da capela abrir repentinamente, o padre a quem tinha deixado a carta surgia, ofegante e olhava para a praça tentando encontrar o carteiro, que nem o tinha visto sentado ao lado da porta.
- Ah, está aí! – disse, surpreso e ao mesmo tempo sem saber o que dizer.
- Sim, estou cansado, descanso um pouco, se não se importa.
- Claro que não… - ficou a olhar para a carta aberta.
- Quem lhe entregou esta carta?
- Não sei, isso é do serviço, eu apenas carrego o alforge e deixo as cartas com os seus donos. – respondeu humildemente.
- Ah…
- Mas padre, são más notícias?

Ficou a olhar para o carteiro por alguns segundos.
- Não sei… Importa-se que me sente a seu lado? – perguntou com uma dose de simplicidade que o carteiro ainda não tinha visto.
- Oh meu padre, eu estou em sua casa, não precisa de me pedir autorização – respondeu divertido.

O padre sorriu, realmente, fazia sentido.
- Estou em minha casa sim… Fiz dela a minha casa… Mas não é minha… Tenho-me esquecido disso… Posso confessar-lhe uma coisa?

O carteiro olhou surpreso…
- Mas padre, como posso eu confessá-lo? O senhor confessa-se com Deus… Eu sou um carteiro…
- Sim, tens razão jovem – e pousou a sua mão esquerda sobre o joelho do carteiro – mas eu ultimamente tenho-me confessado a um Deus… - parou um pouco e olhou em frente – tenho-me confessado a um Deus que eu criei…

Ao olhar curioso e perplexo do carteiro, o padre continuou.
- Eu criei este Deus, este que vês à tua volta – e fazia um gesto com o braço direito, empunhando ainda a carta, apontando para as grades em torno do coberto – Transformei palavras de amor e libertação em grades e opressão, em medos infundados… - Suspirou – tenho-me esquecido que também eu sou carteiro…

Parou e olhou para o carteiro, tirou a mão do joelho e deu-lhe uma pequena palmada nas costas. Depois, sorrindo, tirou-lhe o chapéu e colocou-o sobre a sua cabeça.
- Que tal, pareço um carteiro?
- Se me permite senhor padre… - foi interrompido pelo padre.
- Bernardo… O meu nome é Bernardo, tenho-me esquecido disso.
- Pois… Sabe, uma vez li numa carta para outra pessoa – emendou de seguida – Espere, li numa carta para outra pessoa, porque essa pessoa me pediu para a ler! – o padre riu-se – Li que as pessoas valem pelo que são, pelo que fazem com o que têm… Eu acho que sou carteiro, mesmo sem o chapéu e o uniforme… Se calhar o senhor padre…

- Bernardo – interrompeu-o
- Se calhar o Bernardo também seria padre sem a batina e o anel…
- Sim, tens razão… Se calhar… Mas habituei-me tanto a este papel, a este poder, que tenho-me esquecido de ouvir as pessoas, para e por quem eu vim para aqui… Vou ter que mudar alguma coisa… Rapaz, dás-me uma ajuda? – perguntou levantando-se.
- Sim…
- Então agarra nessa ponta, cuidado não te piques! – disse, indo para a outra extremidade da grade.

Agarram um em cada ponta da grade e começaram a fazer força para fora, mas a grade não se mexeu.
- Acho que as grades que têm que cair, caem para dentro… - lançou o carteiro. E começaram a puxar, agora para dentro do coberto.

Não tardou muito para que as grades cedessem á força do padre e do seu recente amigo. Primeiro desencaixaram-se e depois dobraram-se, o que fê-los cair de costas, rindo.
- Ainda faltam aquelas – disse o padre, apontando para o outro lado do coberto.

Caíram com mais facilidade que as outras.
- O que vai fazer a isto? – perguntou o carteiro.
- Não sei… Isto não arde… Tive uma ideia! Ora ajuda-me aí na ponta! – falava e olhava para a grade tombada.

Agarram um em cada lado da grade e o padre foi guiando, à frente. Pararam à entrada do coberto. O padre riu-se sozinho e disse:
- Levanta essa parte da grade. Assim não, ao contrário, de forma a fazer uma escada!

O carteiro começou a levantar a grade, até que esta chegou ao tecto, apoiando numa viga de madeira. Ao lado da viga, por cima do portão, estava uma faixa que dizia: “Casa de Deus”.

O padre subiu, então, a grade transformada em escada e agarrou a faixa, retirando-a com cuidado. Desceu com a faixa e, chegado ao chão, disse:
- Segura aí, por favor, vou lá dentro buscar um material.

Regressou com um pincel e tinta, que pousou no banco de pedra. Depois, pegando na faixa, estendeu-a no chão e disse:
- Chegas-me por favor a tinta e o pincel? Quando escrevi isto, não era bem isto que queria escrever.

Começou a escrever na faixa, molhando o pincel na tinta, limpando o excesso de tinta no rebordo da lata. Quando acabou podia ler-se: “Bem-vindo à cada de todos os deuses”.

Sorria orgulhoso e olhava para o carteiro com uma expressão de felicidade, como que a pedir uma opinião abanou a cabeça.
- Está diferente… Mas o que quer dizer?
- Bem, quer dizer que esta casa não escolhe deuses, nesta casa é livre de entrar quem quiser, também podem perguntar o que quiserem…
- Mas, é mesmo assim? Acha que as pessoas aceitam bem?
- Acho que as pessoas têm que aceitar outros pontos de vista, têm que respeitar os deuses das outras pessoas.
- Mas, isso não leva as pessoas a não acreditarem em deus?
- Talvez… Mas na carta que em boa hora me entregaste, dizia que as pessoas precisam de acreditar mais nelas, nelas próprias… Dizia que transferiam muita da sua responsabilidade para um padre ou para deus… Que está na hora de acreditarem nelas com um deus, como o seu deus…
- Mas senhor padre…
- Bernardo, rapaz, chamo-me Bernardo…
- Pois, mas onde fica deus então? Não existe?
- Oh, claro que existe… Deus é tudo o que existe… Acho que é a vida… A natureza… Os animas… O espaço… Tu… Eu…
- Eu?
- Sim, tu, porque não?
- Não sei… Nunca tinha pensado nisso…
- Habituamo-nos a não pensar… A ser o que os outros são… A seguir os outros… Está na hora de sermos nós mesmos…
- Mas as pessoas são tão diferentes… Cada uma tem o seu Deus…
- Mas este planeta não deixa de ser este planeta por ter povos diferentes, animais diferentes, climas e países diferentes, ou deixa?
- Acho que não…
- E este universo não deixa de ser este universo por existirem vários planetas, estrelas, etc… Ou deixa?
- Pois não…
- Quando cada um de nós agir de acordo consigo mesmo será um deus…
- E o que acontecerá?
- Bem, acontecerá que quando todos formos um deus, deus existirá em cada um de nós…
- E isso não irá separar as pessoas?
- Não… Os valores base são iguais, respeito pelo homem, por tudo o que existe, respeito por nós próprios e pelo nosso espaço, sentido de responsabilidade perante o que nos rodeia, o que vemos e não vemos… A religião é uma questão cultural… O que existe é o amor…
- É estranho…
- Sim, muito, ainda não consigo compreender… Mas estava escrito na carta… Agora ajuda-me a colocar esta faixa lá em cima.

O carteiro subiu enquanto o padre segurava na escada improvisada. Levava a faixa presa nos dentes e agarrava-se com as duas mãos à grade. Chegado ao cimo encostou a cabeça à viga e, com medo, tirou as mãos da grade, segurando a faixa. Primeiro prendeu uma parte, segurando a faixa no prego que estava lá para o efeito, depois prendeu a outra ponta… Só quando o padre deu uma gargalhada compreendeu que tinha colocado a faixa ao contrário.
- A não ser que queiras que as pessoas façam o pino para ler, é melhor mudarmos a faixa…
- Oh, que diabo! – tapou a boca com a mão e caiu abaixo da grade.

O padre ria-se, enquanto que o carteiro esfregava, com um esgar de dor, o cotovelo…
- Estás bem?
- Sim, estou… - enquanto esfregava continuamente o cotovelo – Desculpe, não devia ter dito aquilo…
- O quê? O diabo?
- Sim…
- Oh, aqui há lugar para todos! – riu – Não devemos ter medo de nada, isso é de facto a única coisa que devemos evitar… O medo. Vamos continuar?
- Bem, sim…

E lá subiu de novo a escada, mas agora colocou a faixa correctamente.
- Rapaz, muito obrigado! – disse o padre, enquanto caminhava em direcção à capela
- De nada… - respondeu, enquanto pegava no seu chapéu e alforge.

O padre quase já tinha desaparecido, quando o carteiro correu para trás e perguntou:
- Senhor padre!
- Bernardo! – ouviu-se já do fundo da capela.
- Bernardo, quem lhe escreveu essa carta? Não tinha remetente…

O padre voltou a trás, olhou para o carteiro, pousou a lata de tinta e tirou a carta do bolso da batina. Abriu-a…
- Que engraçado, com a pressa de a ler, acabei por não ver quem a tinha assinado.
Deu uma gargalhada que fazia abanar toda a batina.
- Está aqui assinado no final: Deus…

O carteiro abanou a cabeça, tinha-lhe passado completamente ao lado esta vivência… Saiu confuso e pensativo. Parou, meteu a mão às cegas no alforge e tirou uma carta.
- Onde raio é que vou encontrar esta aldeola?

Olhou em redor, via o cruzeiro à sua frente, mais ao fundo a estrada por onde veio e, do lado direito, o fontanário onde parara, com várias mulheres jovens e adultas a cantarem. À sua esquerda erguiam-se algumas casas, do lado direito havia um pequeno largo em terra e, ao fundo, uma estrada – Talvez a continuação da estrada por onde vim – pensou e metendo a carta que tinha tirado no bolso de dentro do casaco começou a andar, assobiando.
Ao sair da aldeia olhou para trás, talvez devesse ver se tinha mais alguma carta para aquela aldeia, mas deitou pés ao caminho, para trás ficou apenas uma pequena praça com um cruzeiro no centro e, agora, dois jovens em pé a olhar para a faixa que o padre Bernardo tinha pintado riam.

Andou alguns quilómetros e parou, não pelo cansaço, mas porque não via vivalma e o céu estava já a escurecer. Olhou em redor, não via nada, decidiu continuar até encontrar sítio onde pudesse dormir.
O caminho era em terra, ladeado por muros com cerca de um metro de altura, que serpenteavam por entre campos cultivados.

Algumas árvores que não conhecia tornavam o caminho mais escuro e desejou estar num local abrigado do vento que teimava em soprar. A temperatura baixara, o ar que expirava saía em vapor e sonhava já com uma casa abandonada onde pudesse fazer uma fogueira, aquecer-se, comer um pouco do pão que trazia e dormir.

Os sonhos misturavam-se já com a realidade, perdido nos seus devaneios despertou quando ao sair de uma curva viu um pequeno celeiro com todo o aspecto de estar abandonado. Saiu da estrada, subiu o campo que antecedia e parou em frente ao celeiro. Era, de facto, uma eira, tradicional, com o seu chão em lousa. Tinha os portões fechados, decidiu empurrar para ver se estaria de facto fechado e ficou contente quando o portão pequeno abriu, rangendo. Olhou em volta e não existia nada que indiciasse que aquela eira era de alguém ou, se de facto fosse, não era utilizada vai para muitos anos…
Entrou e fechou o portão atrás de si. Havia alguma palha muito seca, que poderia utilizar como colchão… A utilidade da palha foi de imediato esquecida quando encontrou uns sacos velhos de serapilheira, alguma roupa muito gasta e com bastantes buracos. A eira parecia ter sido utilizada por alguém com os mesmos intentos, pois num dos cantos encontrou vestígios de uma velha lareira improvisada. Pousou por fim o alforge e pendurou o chapéu num dente em madeira de um ancinho abandonado. Ia tirar o casaco quando sentiu frio e decidiu ficar com ele. Meteu a mão dentro do casaco e encontrou a carta, pousou-a em cima de uma meia pipa invertida. Vasculhou um pouco mais e agora sentiu algo pequeno, que fazia barulho quando abanava, eram os fósforos.

Juntou um pouco de palha e saiu para apanhar alguns galhos que por ali tinha ido parar com o vento. Era pouco. Saiu novamente da eira e sem dificuldade vislumbrou uma videira bastante seca e velha, partiu-a facilmente pela raiz e levou-a para a eira. Ainda não chegava, saiu de novo, andou uns cem metros e regressou com dois pinheiros novos, mas secos, que algum fogo queimou e que agora não serviam nem para árvore de Natal. Com o joelho conseguiu partir os pinheiros, mas a videira apesar de seca ficou intacta.

Era já noite, acendeu um fósforo à primeira tentativa e chegou-o à palha. Em segundos, esta ardeu e os troncos secos por cima começaram, lentamente, a ruborescer, ardendo brandamente em seguida.

Sentou-se sobre alguns dos trapos e sacos que encontrou. Arrastou o alforge para junto dele e, com todo o braço imerso em cartas e embrulhos, procurou algo. Encontrou. Tirou, era um saco de pano que abriu, retirando um pão de milho grande. Desembrulhou um guardanapo de pano e tirou a faca, que utilizou para partir o pão em fatias. Por momentos pensou em sair e voltar atrás na estrada para colher algumas das amoras que tinha visto num silvado, mas era já tarde e noite escura.

Levantou-se, pousando o pão, e dirigiu-se para a meia pipa onde estava a carta. Pegou nela, colocou-a entre os dentes e arrastou a meia pipa para a porta, de forma a ficar fechada, não fosse o vento abri-la. Pegou na carta e pousou-a ao lado do pão, sentou-se, a fogueira iluminava já as paredes da eira e dava um calor que aconchegava o corpo e a alma.

O vento começou a soprar com mais intensidade.

O sono começava a invadi-lo. É sempre assim, quando damos descanso ao corpo, o nosso outro corpo pede descanso também. Aqueceu pão quase até ficar tostado e comeu-o, fatia a fatia, deixando algum para o dia seguinte, não fosse a aldeia ser distante. Lembrou-se da carta e pegou nela, colocou-a contra a claridade que a fogueira dava, era uma carta, mais uma…

Pensou em subir uma escada de madeira que levava a um patamar superior, certamente para proteger alguns produtos dos ratos e afins, mas estava cansado demais e a fogueira era, de facto, uma excelente companhia. Guardou religiosamente o pão junto com as cartas, fechou o alforge e colocou a próxima carta a entregar por cima deste.

Estendeu os sacos no chão, limpou o chão à volta da lareira, não fosse alguma faúlha indecisa de noite incendiar as suas cartas. Com um molhe de palha e um pano, que parecia ter sido um avental, inventou uma almofada. Descalçou as botas, sentou-se, puxou o alforge para cima dos pés para os aquecer e deitou-se. O casaco serviu de cobertor e tudo o resto começou a ser longe demais, dos sentidos, da realidade.

Estava a mergulhar nos sonhos quando ouvi um ruído fora da eira, pareciam ramos a cair.
- Podes entrar… - disse meio acordado, meio adormecido

Através da porta entrou uma criança, aparentava 9 anos ou 10.
- Não te importas que fique por aqui a descansar?
- Mas tu já nem precisas de descansar…
- Pois, mas ainda não estou desabituado… Vou sentar-me aqui um pouco.
- E então, tens visitado muitos? – perguntou sem abrir os olhos.
- Visitei há pouco um… São interessantes… Deixei-lhe o meu chapéu para que não me esqueça…

Sorriu e pousou a sacola, sentando-se em cima dela, em frente à fogueira, estendendo as mãos para as aquecer.
- Tens ainda muitas cartas?
- Sim… - meio chateado por ter sido arrancado a um sonho que se aproximava
- E quando as entregares todas?
- Não sei… Não sei se isto alguma vez acaba… Sabes como andam os outros, já entregaram muitas? – ainda de olhos fechados.
- Alguns sim… Outros fazem de conta que não sabem o que têm para fazer e outros, ainda, vão adiando…

O vento parou, a fogueira crepitava num lume brando, quente, hipnotizador, que envolveu lentamente o ambiente… A criança continuava sentada, aquecendo as mãos… O carteiro respirava cada vez mais profundamente. Pelas janelas entravam sonhos de todas as cores, pareciam uma chuva de pó, mas um pó cor de ouro, dourada, prateado também, com partículas pequenas que sorriam, permaneciam juntas, de mãos dadas… Ficaram um pouco a pairar, sorriram baixinho, para não o acordar, e olharam para a criança que tinha entrado. Piscaram-lhe o olho, ele fez um movimento com a cabeça como que apontado para o carteiro e retribuiu o piscar. Então, serenamente, desceram, ainda de mãos dadas, milhões de partículas douradas, pairaram um pouco sobre o corpo do carteiro e, depois, começaram a pousar sobre ele. Umas entraram directamente por entre as roupas e a pele, outras pelos olhos, ouvidos, boca e nariz…

O carteiro suspirou e sorriu, puxou um pouco o casaco-cobertor para si, descobrindo as pernas. A criança tirou a camisola, amarela, com a palavra “Sonho” escrita, e pousou-a sobre as pernas do carteiro. Com o corpo quente, aconchegado por milhões de partículas douradas e prateadas, o carteiro caiu num sono profundo…

As partículas pareciam sair novamente do corpo, lentamente, mas desta vez traziam o carteiro, ou o que parecia ser ele, pois o seu corpo permanecia deitado, sorrindo, aquecido pelo casaco-cobertor, a caminha de Sonhos e a fogueira. Lentamente, os milhões de partículas levantaram um carteiro simples, com um corpo luminoso, mais subtil, que parecia não ter peso algum. Ainda dormiam, com os olhos fechados, os dois carteiros, o deitado no chão e este que os milhões de partículas amparavam… A criança olhou para eles e disse:
- Levem-no lá, ele tem-se esforçado… - e piscou-lhes o olho.

Os milhões de partículas envolveram-no numa esfera de luz, a sensação parecia ser agradável, pois mesmo este carteiro que estava no chão sorria de felicidade…

De repente, os milhões de partículas, de mãos dadas, começaram a movimentar-se, primeiro lentamente e, depois, tão depressa que já não se distinguiam umas das outras, até formarem uma esfera brilhante, mas transparente, numa luminosidade que feria o olhar…

Envolvido em tão fabulosa esfera, o carteiro, em posição fetal, desapareceu, ficando apenas este carteiro, que dormia profundamente, aquecido por uma fogueira, que me piscou o olho…

Meto a mão no bolso, agarro o chapéu, pisco olho e sorrio…

Comentários

Anónimo disse…
Lindo:) quando se começa a ler o que escreves é impossivel parar a meio.
Anónimo disse…
Para onde foi o carteiro? Pois, é por estas e por outras... Andam a dar cabo deles e depois quem distribui a correspondência? Diga lá Sr. Miguel! Arranjou-a bonita, pois sim...

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