A magia do mundo pelos olhos das crianças

O dia amanheceu com chuva. Na verdade, a chuva já lhe entrava pelas entranhas à medida que o Sol invisivelmente se levanta sobre as nuvens… Acordei a meio da noite, cerca das 4:00, com a melodia da água a cair na terra seca e o compasso mais ou menos ritmado das grossas gotas que caiam das telhas do alpendre…

Agora foi-se a chuva, ficaram estas nuvens escuras, cinzentas, que me devolvem a serenidade e o tempo frio, que tanta falta me faz… Ouço Carlos Paredes, só o mestre faz sentido nestas manhãs das primeiras chuvas… Paro um pouco para o escutar, gosto de apurar o ouvido e saborear a respiração dele por entre uma ou outra nota… Isto, Isabel Silvestre ou “Everybody pays” do Mark Knopfler…

Tenho saudades de ser mais baixo que os arbustos, de entrar de rompante pelo monte dentro e ficar todo molhado, sentir o frio da água com os ramos destes meus amigos que me abraçam… Lembro-me de sorver a água que ficava sobre o portão de casa… Quando se é criança tudo é magia, inocência, amizade, ingenuidade (Miguel, não sejas ingénuo) e legitimidade… Onde ficarão estes sentidos à medida que crescemos? E os nossos amigos invisíveis? E os visíveis?
Da minha janela consigo ver alguns, se calhar apenas eu, correndo pelos arbustos, escondendo-se atrás de umas giestas e largando os ramos quando eu passo ou debaixo de uma árvore que eu abano só para os molhar…

As raízes dos pinheiros e eucaliptos são ou foram as garagens dos nossos carrinhos, que andavam sobre caminhos feitos com as vassouras roubadas às mães e animados pelas nossas mãos pequenas… Se não eram os carrinhos eram as caricas, em pistas dignas de figurar nos livros de automobilismo, com curvas em relevo e várias armadilhas pelo caminho… E quando não no caminho, era no muro de minha casa, autênticas corridas que um qualquer Hidalgo gostaria de participar… Havia o jogo do canhão, o futebol que era animado quando a dona chamava a GNR para participar, pasmem-se!, que uma dúzia de crianças calcava o mato… Havia as grutas, o poço das “moutadas”, as “austrálias” e umas mãos de feno roubadas a um colmo para fazer o telhado de uma cabana… E as cabanas, de vários feitios, de vários materiais, que ora construíamos ora destruíamos, à nossa vontade ou como vingança de algo que era logo esquecido… E os jogos de cowboys? Um tiro imaginário, pum!, e ganhava-se uma baixa… As naves na areia do tanque… Puf… Tanto para dizer e lembrar, e sempre o mesmo denominador comum: sou tão feliz com todo o meu trajecto, com todos os meus amigos… E fica sempre tanto por dizer…

Ontem fui a uma das resistentes pequenas drogarias, daquelas acomodadas numa garagem em que as paredes são pintadas com a cor das caixas dos artigos, canhões de fechaduras, puxadores de várias cores e feitios, dobradiças de joelho e outras normais, latonadas ou cromadas, basculantes e até um telefone tapado com uma saca de plástico… No tecto, pendurados dizeres vários, na verdade apenas dois, aos quais não ficamos indiferentes pelas cores garridas… Ao centro, o balcão, com os seus inúmeros blocos de apontamentos e uma caligrafia de fazer inveja ao escriba dos escribas… A simpatia é ainda traço constante e o aperto de mão dos mais sólidos que conheço… É assim mais uma personagem da novela da minha vida, desta minha senda pelos sorrisos dos outros…

Aquela drogaria trouxe-me à memória brincadeiras de criança, em dias de chuva, numa barraca construída em plástico sob a pequena ramada do Sr. Carvalho (que deve sorrir agora onde quer que esteja), onde eu e mais dois amigos compúnhamos avarias imaginárias em objectos inexistentes… Olhar o mundo pelos olhos de criança é mais mágico…

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