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Vindima

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Vindima,  a minha crónica do Nada, no Correio do Porto.  Acessível, também, aqui:  https://www.correiodoporto.pt/prioritario/vindima A apressada corrida pelo mosto, que se escorre na madrugada manhã nublada, no asfalto fresco de uma encosta de aluvião, depois do nevoeiro fumarento da semana votada aos incêndios apadrinhados por interesses órfãos, obriga-me a travar a carrinha a meio da subida numa incógnita freguesia de Souselo. O barrigudo vindimador sorri, apanha o cacho de uvas brancas, caprichosamente prenhes de néctar adocicado, cujo melado escorria pelo grosso braço de calceteiro e se prendia à camisola desportiva, que com um encolher de ombro puxava à razão. Sorriu-me bonacheironamente, na ignorância de uma existência terrena e que, talvez por isso, se viva de forma mais humana, desprendida, na verosímil cadência de um dia a seguir ao outro. Um pequeno Kubota, conduzido despreparadamente, olhava os socalcos de soslaio, na certeza de nada se perder a quem sabe vir a esta vida p

Procissão

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“Procissão”, crónica do Nada, no Correio do Porto ( aqui ).   Movendo-se na modorrenta passada do mais pequenito anjo, o longo préstito atrasava-se ao toque alternado de caixa da banda de música, cujos integrantes saíam protegidos na sombra das tiliáceas. Uma guarda de honra de arcanjos e santidades pendurava-se nos candeeiros da rua, devidamente suportados nos patrocinadores da festividade, enquanto as instalações sonoras anunciavam uma panóplia de empresas dos mais variados serviços e produtos.  O atraso obriga-me a mirar o chão, exploro as sombras que, em fadiga, se deixam pisar por quem pouca luz vê, protegendo-me, ligeiramente, do tórrido calor. Descansando sob as calosidades de pés femininos escanhoados e dedos disformes, envergonhados, empoeiradas sandálias líricas, no contraste com as encardidas unhas humanas, competiam com úngulas equídeas de humildade, por entre rebentos de glória de quem não se sabe feliz, porque não lhe sabem o valor, mesmo não tendo ela preço.  Içando numa

Minuto de silêncio

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"Minuto de silêncio" Crónica do Nada, no Correio do Porto . Saímos de casa no frescor da fina matinal chuva transpirada pelo Verão. A ansiedade barbeou a face de véspera e há uma espécie de sensação de regresso ao local onde estarei quando chegar, apesar de já lá estar. Com a viagem realizada em caminhos alternativos, a atenção vira-se para novos deltas, plantações esverdeadas do que não conhecemos, toponímias distintas que nos fazem gargalhar, na simplicidade jocosa da linguística e do equilíbrio entre o calão e a imaginação. O local de encontro, para os acompanhantes, ladeia-se de árvores e piso esverdeado, mas os mancebos septuagenários, que se reúnem novamente, estão numa ensolarada parada ou à entrada da camarata do batalhão, sem toque de recolher. A vida foi macerando de forma distinta aqueles que comigo se cruzam. A passagem do tempo esculpiu-me, geneticamente, em similar busto do meu pai, talvez por isso alguns o afirmem perguntando-me se sou seu filho. Outros reencon

Nome

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“Nome”, mais uma crónica do Nada (que não consigo deixar de escrever), publicada no Correio do Porto ( aqui ).   Com o amanhecer de Domingo, o Maio anuncia-se nos meus joelhos doridos da neblina. O Café vai tendo as mesmas caras conhecidas, o balcão aquece-se nos braços de fora das mangas curtas. A máquina do tabaco informa o preço do vício a quem conta os trocos para saciar os que fumam por eles, a cada um seu mal, mais uns passos arrastados na lama do umbral. “Era uma cerveja com favaios”, o tom forte e arrastado de uma voz endurecida ao Sol, na vida, “Se faz favor”, na educação que ainda se cultiva em terras rurais. A face conhecida coloca-se à frente do nome e, por não me lembrar dele, não o saúdo como queria. Sou mais velho em grãos de terra sob os pés, mas parece ultrapassar-me na tez negra, queimada, de quem constrói para que outros usufruam. Muitas das vezes, a custo de uma subvalorização a que se acostumam, na maioria, os que se julgam superiores aos outros. Encosto-me às letr

Floresce o homem rebelde...

Floresce o homem rebelde entre as frestas nos arcabouços da clausura, do planalto às lezírias, em mares ígneos navegados espelhando tímidas lágrimas coloniais, rostos mancebos sulcados lavravam saudades lívias de pai e mãe e dos torrões matinais arados. Na floresta de salgueiros e maias um exército pacífico de bravos, forja em silêncio desejado armas que florirão cravos. De frente mirando o horizonte, à sombra do esquecimento uma nação, comandavam o progresso da paz armados de abril em brasão. Silenciada a amargura de uma boca esfomeada ou cúspide ditadura, alcançou-se em regozijo tranquilidade celeste, porque o infinito não tem idade se despojado veste a nudez da liberdade.   (poema 25 de Abril, para actividade na Esc. Sec. Penafiel)

Geografia

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“Geografia", felizes encontros na minha secção Crónica do Nada , no Correio do Porto. Estaciono sob os chilreios floreados de plantas que desconheço, atrás do gradeamento que sorri metalicamente com as brincadeiras dos miúdos na hora do intervalo entre aulas. Está o planeta, pelo menos neste hemisfério, na Primavera, assim como a canalhada, floreando, sem grandes preocupações com os Outonos futuros que lhe trarão tonalidades acinzentadas. Aguardo à entrada que me atendam. A porta aberta ao público obriga-se a controlar fluxo de entradas e saídas, o progresso chega a todo o lado. Contei vários equinócios de Março, já, no entanto, vejo-me sempre criança à porta de uma escola, como se o tempo me conhecesse apenas agora, miúdo, sem nunca saber fazer-me graúdo. Envergonhado, vou percorrendo memórias de Abril por quem nunca as viveu, senão pelos cravos dos livros de História. Escondo-me atrás da aparência adulta, rodeiam-me sonoridades e trinados que sobem e descem patamares, degraus, a

Salgueiros

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 “Salgueiros”, um retorno às origens, na minha Crónica do Nada, no Correio do Porto . À saída da VCI e longe dos holofotes habituados a iluminar noites de futebol azul e branco, as rotundas rotundadas convidam a enganar-me, falheiro que sou de trajectos urbanos, agora que me quero cada vez mais rural, plantado talvez àquilo que de mim me espero, um punhado de sementes de nada e um plantio fútil daninhando os jardins efémeros que são os milhões de anos à sombra de um Sol cansado, ainda que adolescente. Estaciono ao largo do Cerco, por entre pequenos paralelos perdidos por qualquer enxurrada ou calceteiro menos pródigo a arrumações graníticas. O céu cinzento assusta tanto quando o aviso de quem, mais à frente, convida a não deixar nada à vista dentro da viatura. A vantagem de nada ter, é mesmo o facto de nada me poderem roubar. Não termino o raciocínio e já uma saraivada localizada abre alas a uma matiz brilhante da manhã que espreita por entre os gradientes cinzentas do firmamento. A ma