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Lugar de Carlão

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"Lugar de Carlão" , nova crónica no Correio do Porto, na minha secção Crónicas do Nada . O povo já era próximo antes das uniões de freguesias que nos trouxeram proximidade toponímica, mas não afastaram o abandono que grassa nos patamares oliveirescos onde crescem olivas por entre o abandono. Toda a terra nos quer seu dono. Ainda que sobrem por lá ruínas e promessas de escombro, a memória não escolhe onde criar raízes, sejam elas ausências tristes ou lembranças felizes. O largo estreito da aldeia no lugar, ou lugar da aldeia, vai vendo as casas desfalecerem à passagem do tempo. No balcão da loja há um puto que serve água em vez de bagaço, coisas da mocidade, que despertará uma boa gargalhada quando ela, a idade, surgir cinquentenária por sobre os nomes que se vão gravando nas lápides. Em muitos locais, só no cemitério cresce população. E mesmo aí, os montículos de terra, as jarras erodidas pelo vento, o verde do musgo crescido no interior das águas estagnadas, alimentam peque...

Secundária

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"Secundária", crónica publicada na minha secção "Crónicas do Nada", no Correio do Porto [ aqui ]. Enquanto desço a rua no passeio cinzento e me desvio, a sorrir, de namorados adolescentes em descobertas não lectivas ou lecionadas, oscilo na recordação do que me leva à minha antiga escola secundária de Baltar e na preocupação com o ter colocado, ou não, todos os livros na mochila e evitar uma desnecessária falta de material. Não há meninas ao largo e, assim, a vergonha passa também para dentro do saco. Sigo confiante. O portão está aberto, mas a educação imobiliza-me, enquanto coloco a mão no bolso de trás à procura do cartão de estudante. Do lado de lá do postigo, perguntam-me ao que me dirijo com uma solenidade dedicada, apenas, aos adultos externos à comunidade escolar. Acordo. Claro! Que patetice! Apercebo-me dos acumulados trinta anos de tamanho que me fizeram crescer além da última visita, ainda estudante formal, à minha outrora estreada escola secundária, ...

Pastoreio

  Pastoreio , conto publicado na colectânea de contos do Parque das Serras do Porto, 2023 – Ramalho, não! Passa por mim, numa simpatia apressada, a pastora ofegante por detrás das graduadas lentes que a visão adequa à miopia e madeixas, engrenhadas, coladas ao suor de uma tarde transpirada. – Ramalho! Não! As galochas verdes calcam o chão num ritmo atordoado enquanto o calor se afasta do bordão agitado no ar. Desvio-me, nunca se sabe onde o cajado irá parar. Mas o Ramalho, deduzo ser o nome do carneiro, senhor do seu casaco urdido em flocos cinzentos, de terra rebolada em pó sublimado, continua a correr em direcção à fonte de água barrenta, não oxidando o minério que a serra vai parindo, sem necessidade de garimpo. Atrás dele, ordeiras, à pastora ou ao patriarca ovil, seguem cordeiros tenros em passos saltitantes, numa preocupação animal de encher o espaço entre refeições, com outras ruminâncias que o tempo encarregará de saltar em transumâncias. A Serra espreguiça-se, ca...

Reunião

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“Reunião”, resumos dos encontros adolescentes em vida de adulto na minha mais recente crónica no "Correio do Porto". https://www.correiodoporto.pt/prioritario/reuniao – Vais escrever um poema? – perguntam-me em tom divertido. A pergunta rasga-me a abstração e o anotar mental dos esquiços em palavras que me vão fugindo da memória. Retorno ao jantar e continuo a sorrir num misto de envergonhado e divertido. A funcionária bamboleia as travessas de carne semi-crua e quase morna, a travessa e a pessoa, pousando-as nas toalhas de papel onde a matemática assíncrona do filete cerâmico desenha circunferências de gordura com diferentes diâmetros. Até aqui, a matemática circunscreve-me aos tempos adolescentes, entre perguntar-me para que raio necessitaria daquilo para o meu futuro e o responder-me, volvidas décadas, o quanto o caos se cria em padrões cristalinos, numa espécie de linguagem que permite compreender a sombra do grafite caído do lápis infinito na caligrafia do Criador. Com o...

Alambique

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"Alambique", uma crónica destilada no Correio do Porto, na minha secção Crónicas do Nada. [ https://www.correiodoporto.pt/prioritario/alambique-2 ] Encostado ao ladrilhado falso de cimento armado os blocos unem-se na parede que segura os dias vazios e o frio esgueira-se por entre o telhado de zinco, sem reparar que a porta aberta convida qualquer um, inclusive a tristeza, a entrar e acolher-se ao sossego de uma madrugada fresca, agora que a Terra Quente esfria, modorrenta, à espera do Inverno. No equilíbrio ténue dos dias avançados e sobre o funil azul, os dedos bolbosos de quem nasce da terra e sabe, por inerência do destino a quem se permite viver acima dos quotidianos mundanos, que à terra o seu torrão carnal voltará, seguram o cálice sagrado que acolhe o destilado, já depois da ascensão aquecida da caldeira e a queda condensada ao longo da serpentina de arrefecimento.  – Vai um copinho? Vai um copinho? – pergunta dupla, n um eco mental que reverbera sem resposta habitual,...

Vindima

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Vindima,  a minha crónica do Nada, no Correio do Porto.  Acessível, também, aqui:  https://www.correiodoporto.pt/prioritario/vindima A apressada corrida pelo mosto, que se escorre na madrugada manhã nublada, no asfalto fresco de uma encosta de aluvião, depois do nevoeiro fumarento da semana votada aos incêndios apadrinhados por interesses órfãos, obriga-me a travar a carrinha a meio da subida numa incógnita freguesia de Souselo. O barrigudo vindimador sorri, apanha o cacho de uvas brancas, caprichosamente prenhes de néctar adocicado, cujo melado escorria pelo grosso braço de calceteiro e se prendia à camisola desportiva, que com um encolher de ombro puxava à razão. Sorriu-me bonacheironamente, na ignorância de uma existência terrena e que, talvez por isso, se viva de forma mais humana, desprendida, na verosímil cadência de um dia a seguir ao outro. Um pequeno Kubota, conduzido despreparadamente, olhava os socalcos de soslaio, na certeza de nada se perder a quem sabe vir...

Procissão

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“Procissão”, crónica do Nada, no Correio do Porto ( aqui ).   Movendo-se na modorrenta passada do mais pequenito anjo, o longo préstito atrasava-se ao toque alternado de caixa da banda de música, cujos integrantes saíam protegidos na sombra das tiliáceas. Uma guarda de honra de arcanjos e santidades pendurava-se nos candeeiros da rua, devidamente suportados nos patrocinadores da festividade, enquanto as instalações sonoras anunciavam uma panóplia de empresas dos mais variados serviços e produtos.  O atraso obriga-me a mirar o chão, exploro as sombras que, em fadiga, se deixam pisar por quem pouca luz vê, protegendo-me, ligeiramente, do tórrido calor. Descansando sob as calosidades de pés femininos escanhoados e dedos disformes, envergonhados, empoeiradas sandálias líricas, no contraste com as encardidas unhas humanas, competiam com úngulas equídeas de humildade, por entre rebentos de glória de quem não se sabe feliz, porque não lhe sabem o valor, mesmo não tendo ela preço....