Mensagens

Rosalin(d)a

Imagem
Rosalin(d)a, ou um encontro.  A minha nova crónica do Nada, no Correio do Porto.( https://www.correiodoporto.pt/prioritario/rosalinda ) O corredor de um hipermercado ostenta quase tudo aquilo que possui e que eu não necessito. David, do alto da sua vigésima terceira ode, sabia bem o que desejava, o nada que sobra de tudo o que não faz falta. De repente, encontro-a sentada num monte de sacos de peletes em sofá improvisado. O sorriso é do tamanho das décadas que me separam da felicidade que vive na memória, aquilo a que orgulhosamente posso chamar história. No beijo e abraço que trocamos reencontro o conforto das manhãs frias onde o quente leite adocicado, retirado da gigantesca panela, servido num usado e translucidado copo, me aquecia o corpo e, agora, o olhar. A sala de aula era ágora extraordinária, a professora no centro, em todo o lado a funcionária. O viveiro colorido que era a escola primária, agora ornamentado de pomposos nomes agrupados, era ameia, muralha, castelo e univer...

O último cacho

Imagem
" O último cacho ", nova crónica do Nada, no Correio do Porto. O frio cobre-me os braços para uma manhã de sábado pré-Outonal. Esfrego-os para me aquecer e continuo o caminho. Vozes inusitadas à hora matinal percorrem o nevoeiro e chamam-me a atenção. Risos. Aqui e ali uma voz adolescente chama por alguém, numa voz estridente alguém pergunta:   – Este cacho é para a travessa?   Uma voz septuagenária responde, arrastada e agastada.   – Nem para beber há que chegue, deita-o no balde.   Os termos, os sons das tesouras de poda a tricotarem a manta que cobre as minhas recordações, emocionam-me. Ou talvez seja o frio. Apercebo-me que é a época das vindimas quando, na minha mente, já a última poda tinha talhado toda e qualquer colheita que recordasse os meus dias de adolescente. Por entre as folhas das videiras fronteiriças um rosto assoma, espreita e saúda-me. Retribuo com um sorriso. O “bom dia” ficou preso nas rememorações atravessadas na minha glote.    Ao olh...

Verão

Imagem
Verão  Nova crónica na minha secção "Crónicas do Nada", no Correio do Porto. O calor acomete-se a quem, de véspera em vésperas de dias por vir, se inunda dos pretéritos que ainda não chegaram à margem do tempo presente. O tempo ausente banha os veraneantes, a contas com protecções dérmicas, bronzeados imigrados de uma tez que não existe. A irrealidade é vivida de publicação em publicação, a leitura pulula de comentário em comentário. A curiosidade inócua intromete-se na realidade da existência irreal que nasce nas leiras dos comentários, comentados entre comentários e figuras animadas de sorrisos e palmadinhas nas costas em forma de corações. O quão mais natural seria a voz, ainda que envergonhada, desabituada, proferir o que o coração muitas vezes quer dizer, mas por falta de prática não o sabe fazer. São férias, senhor, diria um espírito mais compassivo e ausente frequentador de orbes tão densos como este terceiro planeta a contar do astro rei. Enquanto ardem as labaredas ...

Arraial

Imagem
"Arraial", para ler no Correio do Porto , na secção "Crónicas do Nada".    Fora do silêncio, tudo parece ficar para trás, com excepção do verdadeiro, pois não há memória de mentira que nos adiante o passo, além da falácia de sermos mais uns do que outros. Ou menos. Que não iguais. Com o avançar da idade, a estrada à nossa frente parece enrugar-se e recuar num destino que, apesar de cada vez mais perto, esconde-se atrás de cada novo sonho urdido. Ao presente que nos presenteia a existência, acometem-se as sonoridades de tempos em que os arraiais eram menos fartos em néon. Na avenida cortada ao trânsito automóvel, transeuntes de vestes humanas passeiam-se desnudos, gastos e menos gastos na vida. Uma matilha de cães de peluche, num irritante estridente ladrar metálico, mexem automaticamente as pequenas patas desarticuladas numa corrida desenfreada sem sair do lugar (ou a tecnologia a imitar a humanidade). Ao fundo da rua cortada longitudinalmente pelo canteiro central ...

Um café e uma nata

Imagem
“ Um café e uma nata ” ou nova crónica na minha secção Crónicas do Nada no Correio do Porto . Enquanto miro os reflexos difusos na montra do café, fugindo às conversas fúteis do noticiário matutino, vejo-o chegar num imaculado verde trajado sobre um corpo adulto, numa mente infantilizada, virgem, onde não habitam as fraquezas de outros. Sopro a espuma da meia de leite, mais para disfarçar a atenção do que propriamente preparando-me para sorver o vício lácteo imiscuído entre o café, um pouco como eu e a fé.  Quando a porta se abre, os sons pueris saltam da piscina e das toalhas à sombra prévia do Sol abrasador. A confusão assíncrona abafa o noticiário e, apesar do incómodo hertziano de ondas sonoras em diferentes timbres, sinto-me mais liberto da programação noticiosa (infecciosa?) e acabo por sorrir, escondido. Ao chegar ao balcão, a familiaridade da funcionária num português açucarado, atira um bom dia em forma de animado: – É um café e uma nata? – já com o produto pronto em band...
Sorriu-me a maré dourada que se estendia, pelas sombras do que o Sol não cobria.  Ondas de lavoura e espuma de milheirais, na irregular costa da simplicidade de amar a terra, eis os despojos sem guerra! Um arado que se verte pelo olhar, eu e as nuvens a suspirar, o texto que teima em falar e eu, navegante, calado, sem me saber sequer vocalizar, porque há um hiato entre as vagas das vidas onde não sei nadar.

Imagem
“Fé”, a mais recente crónica no Correio do Porto, na minha secção "Crónicas do Nada". https://www.correiodoporto.pt/prioritario/fe-2 A manhã da Póvoa tinha dado à costa uma neblina fresca, transpirando salpicos de maresia a cada passo ao longo da linha da praia. As lojas dormitam na manhã de feriado, a liberdade ainda não saiu à rua, faces sonolentas passeiam pequenos canídeos e uma sorridente funcionária camarária varre a baixa parede que serve de degrau aos mais impacientes, longe que vêm os degraus para o areal.  Do outro lado da avenida, um ou outro estabelecimento abre as portas aos funcionários, tez asiática, um mundo de igualdade a quem procura liberdade, que vão conversando em voz alta com a invisível e incompreensível língua que ecoa no auricular. Mesmo à distância de um hemisfério, o estrangeiro pode fazer-se lar. Movimentos rítmicos e bem ensaiados à luz da prática limpam as vitrines viradas para o Atlântico. Com a ignorância de saber ao que me voto, na democrática...