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Um café e uma nata

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“ Um café e uma nata ” ou nova crónica na minha secção Crónicas do Nada no Correio do Porto . Enquanto miro os reflexos difusos na montra do café, fugindo às conversas fúteis do noticiário matutino, vejo-o chegar num imaculado verde trajado sobre um corpo adulto, numa mente infantilizada, virgem, onde não habitam as fraquezas de outros. Sopro a espuma da meia de leite, mais para disfarçar a atenção do que propriamente preparando-me para sorver o vício lácteo imiscuído entre o café, um pouco como eu e a fé.  Quando a porta se abre, os sons pueris saltam da piscina e das toalhas à sombra prévia do Sol abrasador. A confusão assíncrona abafa o noticiário e, apesar do incómodo hertziano de ondas sonoras em diferentes timbres, sinto-me mais liberto da programação noticiosa (infecciosa?) e acabo por sorrir, escondido. Ao chegar ao balcão, a familiaridade da funcionária num português açucarado, atira um bom dia em forma de animado: – É um café e uma nata? – já com o produto pronto em band...

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“Fé”, a mais recente crónica no Correio do Porto, na minha secção "Crónicas do Nada". https://www.correiodoporto.pt/prioritario/fe-2 A manhã da Póvoa tinha dado à costa uma neblina fresca, transpirando salpicos de maresia a cada passo ao longo da linha da praia. As lojas dormitam na manhã de feriado, a liberdade ainda não saiu à rua, faces sonolentas passeiam pequenos canídeos e uma sorridente funcionária camarária varre a baixa parede que serve de degrau aos mais impacientes, longe que vêm os degraus para o areal.  Do outro lado da avenida, um ou outro estabelecimento abre as portas aos funcionários, tez asiática, um mundo de igualdade a quem procura liberdade, que vão conversando em voz alta com a invisível e incompreensível língua que ecoa no auricular. Mesmo à distância de um hemisfério, o estrangeiro pode fazer-se lar. Movimentos rítmicos e bem ensaiados à luz da prática limpam as vitrines viradas para o Atlântico. Com a ignorância de saber ao que me voto, na democrática...

Lugar de Carlão

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"Lugar de Carlão" , nova crónica no Correio do Porto, na minha secção Crónicas do Nada . O povo já era próximo antes das uniões de freguesias que nos trouxeram proximidade toponímica, mas não afastaram o abandono que grassa nos patamares oliveirescos onde crescem olivas por entre o abandono. Toda a terra nos quer seu dono. Ainda que sobrem por lá ruínas e promessas de escombro, a memória não escolhe onde criar raízes, sejam elas ausências tristes ou lembranças felizes. O largo estreito da aldeia no lugar, ou lugar da aldeia, vai vendo as casas desfalecerem à passagem do tempo. No balcão da loja há um puto que serve água em vez de bagaço, coisas da mocidade, que despertará uma boa gargalhada quando ela, a idade, surgir cinquentenária por sobre os nomes que se vão gravando nas lápides. Em muitos locais, só no cemitério cresce população. E mesmo aí, os montículos de terra, as jarras erodidas pelo vento, o verde do musgo crescido no interior das águas estagnadas, alimentam peque...

Secundária

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"Secundária", crónica publicada na minha secção "Crónicas do Nada", no Correio do Porto [ aqui ]. Enquanto desço a rua no passeio cinzento e me desvio, a sorrir, de namorados adolescentes em descobertas não lectivas ou lecionadas, oscilo na recordação do que me leva à minha antiga escola secundária de Baltar e na preocupação com o ter colocado, ou não, todos os livros na mochila e evitar uma desnecessária falta de material. Não há meninas ao largo e, assim, a vergonha passa também para dentro do saco. Sigo confiante. O portão está aberto, mas a educação imobiliza-me, enquanto coloco a mão no bolso de trás à procura do cartão de estudante. Do lado de lá do postigo, perguntam-me ao que me dirijo com uma solenidade dedicada, apenas, aos adultos externos à comunidade escolar. Acordo. Claro! Que patetice! Apercebo-me dos acumulados trinta anos de tamanho que me fizeram crescer além da última visita, ainda estudante formal, à minha outrora estreada escola secundária, ...

Pastoreio

  Pastoreio , conto publicado na colectânea de contos do Parque das Serras do Porto, 2023 – Ramalho, não! Passa por mim, numa simpatia apressada, a pastora ofegante por detrás das graduadas lentes que a visão adequa à miopia e madeixas, engrenhadas, coladas ao suor de uma tarde transpirada. – Ramalho! Não! As galochas verdes calcam o chão num ritmo atordoado enquanto o calor se afasta do bordão agitado no ar. Desvio-me, nunca se sabe onde o cajado irá parar. Mas o Ramalho, deduzo ser o nome do carneiro, senhor do seu casaco urdido em flocos cinzentos, de terra rebolada em pó sublimado, continua a correr em direcção à fonte de água barrenta, não oxidando o minério que a serra vai parindo, sem necessidade de garimpo. Atrás dele, ordeiras, à pastora ou ao patriarca ovil, seguem cordeiros tenros em passos saltitantes, numa preocupação animal de encher o espaço entre refeições, com outras ruminâncias que o tempo encarregará de saltar em transumâncias. A Serra espreguiça-se, ca...

Reunião

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“Reunião”, resumos dos encontros adolescentes em vida de adulto na minha mais recente crónica no "Correio do Porto". https://www.correiodoporto.pt/prioritario/reuniao – Vais escrever um poema? – perguntam-me em tom divertido. A pergunta rasga-me a abstração e o anotar mental dos esquiços em palavras que me vão fugindo da memória. Retorno ao jantar e continuo a sorrir num misto de envergonhado e divertido. A funcionária bamboleia as travessas de carne semi-crua e quase morna, a travessa e a pessoa, pousando-as nas toalhas de papel onde a matemática assíncrona do filete cerâmico desenha circunferências de gordura com diferentes diâmetros. Até aqui, a matemática circunscreve-me aos tempos adolescentes, entre perguntar-me para que raio necessitaria daquilo para o meu futuro e o responder-me, volvidas décadas, o quanto o caos se cria em padrões cristalinos, numa espécie de linguagem que permite compreender a sombra do grafite caído do lápis infinito na caligrafia do Criador. Com o...

Alambique

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"Alambique", uma crónica destilada no Correio do Porto, na minha secção Crónicas do Nada. [ https://www.correiodoporto.pt/prioritario/alambique-2 ] Encostado ao ladrilhado falso de cimento armado os blocos unem-se na parede que segura os dias vazios e o frio esgueira-se por entre o telhado de zinco, sem reparar que a porta aberta convida qualquer um, inclusive a tristeza, a entrar e acolher-se ao sossego de uma madrugada fresca, agora que a Terra Quente esfria, modorrenta, à espera do Inverno. No equilíbrio ténue dos dias avançados e sobre o funil azul, os dedos bolbosos de quem nasce da terra e sabe, por inerência do destino a quem se permite viver acima dos quotidianos mundanos, que à terra o seu torrão carnal voltará, seguram o cálice sagrado que acolhe o destilado, já depois da ascensão aquecida da caldeira e a queda condensada ao longo da serpentina de arrefecimento.  – Vai um copinho? Vai um copinho? – pergunta dupla, n um eco mental que reverbera sem resposta habitual,...