Poesia na Garganta (30-06-2018)
Texto publicado para o evento "Poesia na Garganta", no dia 30-06-2018, na Garganta do Salto (Aguiar de Sousa), no Parque das Serras do Porto.
Vejo o local, o salto, como uma metáfora entre o salto para o vazio, o despertar para uma natureza física e moral, no respeito do que é pelo simples acto de se ser como é, tal como a fé. Assim, criei este texto que é apenas a minha visão, o despertar que surgiu pelo homem correr atrás dos seus medos, saltando com a ajuda animal, que nunca nos quer mal, para um vazio onde a natureza nos acolhe, assistindo entristecida ao nosso esquecimento de civilização em civilização e permanecendo imóvel, como a garganta do Salto, a assistir aos desvarios mundanos, na esperança que, metaforicamente, possamos dar novo salto de encontro a nós mesmos.
Garganta
(09-06-2018)
Apenas o borbulhar pachorrento da água, às cambalhotas por entre os godos, fazia o dia correr de um lado para o outro, coisa sábia de se fazer, daqui para ali, dali para aqui, até que a natureza se encarregue de esculpir no silêncio a voz de todos os homens sós.
De boca aberta como quem arfa o ar que não sorve, proscrito pelos homens, reverenciado por deus, o inferno, cujo camoniano linguístico faz rimar, e bem, com Inverno, trespassava a naturalidade da pacatez de quem vive na polaridade de um mundo bipolar, atravancado entre o metamorfismo que o ventre da terra foi deixando passar, ribeiro ante ribeiro, odor ante cheiro, até que gretado e erodido, talvez um pouco perdido, caminhou-lhe por entre as fragas o fino tenor de águas suplicantes, como quem a vida ousa, nascente a montante, a jusante soante Sousa.
Desencantado com o verdejar agreste, a força do homem cipreste, sentado numa pedra bolideira sem eira, apenas com beira, fazia do tapete de musgo o pasto sonhado, sem planalto, com o rebanho de fantasmas animais que na periclitância do desconhecido, caindo no vazio, saciavam o apetite ardente de um demónio no cio.
Olhar o céu dardejando o destino é forma rápida e certa de um ser perder o tino, mas não cabe ao homem, ao animal, ainda que a vista lhe chame ali jamais Iria, porque quem pedra nasce, de salto não reza a história, apenas a lenda e pouca glória.
Ainda antes de escarpar a face, como quem nasce, escanhoa uma leira no terreno baço e rugoso, apenas por arrelio do tempo, esse teimoso. Esquecido pelos panteões onde se traçaram, ignobilmente, os destinos pastoreados de quem se julga gente, foi-se jardinando como pôde, agarrando junto a si as vidas que cabiam num alforge, ora edenizando a humidade cristalina de fetos sem sina, nascidos da juvenil mocidade, na silenciosa intimidade, os corpos arfantes, ardentes e depois ausentes, ora cultivando sob as suas carícias inacessíveis ao sal da existência, o salgueiro, o amieiro, o loureiro e todo o tipo de cabrestos que mais tarde varreriam o chão onde ardia a lareira da morte, sem tição.
Ali, naquele paraíso achado onde se perdiam incautos animais, quadrupedes ou bípedes, ostentava-se a beleza inacessível do esbelto, no olhar interior de quem se resguarda em comunhão com a natureza, como quem reza, na oração florestal onde nunca habitou o mal.
Era noite pegada, as estrelas deixavam o seu trilho leitoso no negro e de costas viradas à terra, com quem nunca se ganhou guerra, o seu guardião no escutar do crepúsculo a nascer onde se põem as estrelas a arrefecer, ouviu as margens do silêncio repercutirem cavalgadas de equino montado, na ânsia de fugir à demência de cavalgador a perseguir os seus próprios medos. Num esgar de tempo que passa no hiato entre as sílabas do momento, vê o cavalo alvo fixar patas na margem enterrando-se na rocha firme que a garganta amaciara, soltando arreio, estribo, sela e cavaleiro que, sem montada, se transforma apenas num corpo amorfo cuja terra deglute sem grande satisfação, caindo no abismo da cegueira de se querer mais colheita que sementeira.
A eternidade dá ordem ao tempo, abranda-se o firmamento e soltando-se pela vereda da imaginação, a raridade selvagem faz do abismo margem, acolhe o corpo tosco do homem depositando-o calmamente, como sempre faz com as folhas das árvores, sobre um monte de tojos.
Acorda o dia adormecido pelo susto, a cabeça oscila no delírio do despertar e antes do corpo enraizar o silêncio faz-se perene, a névoa da existência já não o contém. Ali entre escarpas tinha-o acolhido, nos alvos braços, a própria Mãe.
De tumefacta alma sarada, o homem desperto adormecerá, esquecer-se-á e, na cronologia intemporal do lamento, imaginará que não foi o salto o salvador, plantará um inferno amedrontador e clamará para si próprio o paraíso. O homem sempre foi bicho de pouco juízo. Chamará à divindade que o criara diabo, adorará o verão penando o inverno, esculpindo à sua imagem um inferno, penitenciando-se à sua margem como povo devoto, bebendo de si mesmo quando ainda mosto.
Aguardando o salto raso do Homem ainda hoje o dia acorda nu, sem frio, adormecera sozinho o rio com o céu estrelado por manta, na voz mistificada que o silêncio canta. A vida sorve-se por ti, garganta.
Vejo o local, o salto, como uma metáfora entre o salto para o vazio, o despertar para uma natureza física e moral, no respeito do que é pelo simples acto de se ser como é, tal como a fé. Assim, criei este texto que é apenas a minha visão, o despertar que surgiu pelo homem correr atrás dos seus medos, saltando com a ajuda animal, que nunca nos quer mal, para um vazio onde a natureza nos acolhe, assistindo entristecida ao nosso esquecimento de civilização em civilização e permanecendo imóvel, como a garganta do Salto, a assistir aos desvarios mundanos, na esperança que, metaforicamente, possamos dar novo salto de encontro a nós mesmos.
Garganta
(09-06-2018)
Apenas o borbulhar pachorrento da água, às cambalhotas por entre os godos, fazia o dia correr de um lado para o outro, coisa sábia de se fazer, daqui para ali, dali para aqui, até que a natureza se encarregue de esculpir no silêncio a voz de todos os homens sós.
De boca aberta como quem arfa o ar que não sorve, proscrito pelos homens, reverenciado por deus, o inferno, cujo camoniano linguístico faz rimar, e bem, com Inverno, trespassava a naturalidade da pacatez de quem vive na polaridade de um mundo bipolar, atravancado entre o metamorfismo que o ventre da terra foi deixando passar, ribeiro ante ribeiro, odor ante cheiro, até que gretado e erodido, talvez um pouco perdido, caminhou-lhe por entre as fragas o fino tenor de águas suplicantes, como quem a vida ousa, nascente a montante, a jusante soante Sousa.
Desencantado com o verdejar agreste, a força do homem cipreste, sentado numa pedra bolideira sem eira, apenas com beira, fazia do tapete de musgo o pasto sonhado, sem planalto, com o rebanho de fantasmas animais que na periclitância do desconhecido, caindo no vazio, saciavam o apetite ardente de um demónio no cio.
Olhar o céu dardejando o destino é forma rápida e certa de um ser perder o tino, mas não cabe ao homem, ao animal, ainda que a vista lhe chame ali jamais Iria, porque quem pedra nasce, de salto não reza a história, apenas a lenda e pouca glória.
Ainda antes de escarpar a face, como quem nasce, escanhoa uma leira no terreno baço e rugoso, apenas por arrelio do tempo, esse teimoso. Esquecido pelos panteões onde se traçaram, ignobilmente, os destinos pastoreados de quem se julga gente, foi-se jardinando como pôde, agarrando junto a si as vidas que cabiam num alforge, ora edenizando a humidade cristalina de fetos sem sina, nascidos da juvenil mocidade, na silenciosa intimidade, os corpos arfantes, ardentes e depois ausentes, ora cultivando sob as suas carícias inacessíveis ao sal da existência, o salgueiro, o amieiro, o loureiro e todo o tipo de cabrestos que mais tarde varreriam o chão onde ardia a lareira da morte, sem tição.
Ali, naquele paraíso achado onde se perdiam incautos animais, quadrupedes ou bípedes, ostentava-se a beleza inacessível do esbelto, no olhar interior de quem se resguarda em comunhão com a natureza, como quem reza, na oração florestal onde nunca habitou o mal.
Era noite pegada, as estrelas deixavam o seu trilho leitoso no negro e de costas viradas à terra, com quem nunca se ganhou guerra, o seu guardião no escutar do crepúsculo a nascer onde se põem as estrelas a arrefecer, ouviu as margens do silêncio repercutirem cavalgadas de equino montado, na ânsia de fugir à demência de cavalgador a perseguir os seus próprios medos. Num esgar de tempo que passa no hiato entre as sílabas do momento, vê o cavalo alvo fixar patas na margem enterrando-se na rocha firme que a garganta amaciara, soltando arreio, estribo, sela e cavaleiro que, sem montada, se transforma apenas num corpo amorfo cuja terra deglute sem grande satisfação, caindo no abismo da cegueira de se querer mais colheita que sementeira.
A eternidade dá ordem ao tempo, abranda-se o firmamento e soltando-se pela vereda da imaginação, a raridade selvagem faz do abismo margem, acolhe o corpo tosco do homem depositando-o calmamente, como sempre faz com as folhas das árvores, sobre um monte de tojos.
Acorda o dia adormecido pelo susto, a cabeça oscila no delírio do despertar e antes do corpo enraizar o silêncio faz-se perene, a névoa da existência já não o contém. Ali entre escarpas tinha-o acolhido, nos alvos braços, a própria Mãe.
De tumefacta alma sarada, o homem desperto adormecerá, esquecer-se-á e, na cronologia intemporal do lamento, imaginará que não foi o salto o salvador, plantará um inferno amedrontador e clamará para si próprio o paraíso. O homem sempre foi bicho de pouco juízo. Chamará à divindade que o criara diabo, adorará o verão penando o inverno, esculpindo à sua imagem um inferno, penitenciando-se à sua margem como povo devoto, bebendo de si mesmo quando ainda mosto.
Aguardando o salto raso do Homem ainda hoje o dia acorda nu, sem frio, adormecera sozinho o rio com o céu estrelado por manta, na voz mistificada que o silêncio canta. A vida sorve-se por ti, garganta.
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