Pessach

“Pessach”

Crónica do Nada, no Correio do Porto.

O puto abana-se uno com a sineta que trina, o braço cansado pende como um ramo seco de árvore que sonha ser galho, anunciando vem aí o compasso!, a opa alva dança e as nuvens riem-se quando o vento lhe atira o resto da brancura pelas costas acima, embrulhando-se na cabeça. Não se demove, continua a badalar num esforço contínuo apenas vencido pela zelosa missão de, além de adolescente, ver chegar ao fim a madrugada procissão, solitária, a cruz acima e abaixo de caminhos, os verdes ao chão, as flores na mão, de cara fechada, uma madeixa dourada rivaliza com o sino zonzo já de tanta sacudidela firme. O vento desiste soturnamente, as nuvens deixam de joeirar a cena e dispersam num certo tom de desprezo, a opa solta-se e cai harmoniosamente sobre as costas arqueadas, mas não sucumbidas, tudo sem que o sino deixasse de tocar.
A solenidade foi-se perdendo, sobra agora uma espécie de desejo que tudo termine e possa seguir viagem, arrancar um pouco de pão-de-ló com a mão, beber um ou dois cálices de vinho fino às escondidas e suspirar enquanto o foguetório anuncia o fim da cerimónia. Tanto rebentamento só pode ter explicação na necessidade de se fazer calar o som que chove destes dias soalheiros e canta aos ouvidos surdos de quem se faz pessach daqui para onde quer que nos deveremos escutar. Silêncio, Deus vai-se calar.
Entrou sala adentro, a mão no rebordo da sineta a afagar o silêncio e a refrescar o rubor de uma mão cansada, não vencida, trazendo ao redor de si uma aura de episódios que deixou serenar quando cruzou o olhar comigo. Deve ser isto o significado de amigo. Não se escutaram lamúrias sobre o atraso do compasso, aqui Jesus pode ressuscitar com a complacência de quem anda cá há tanto tempo como Ele, na ânsia de um aleluia e um abraço sentido, que vale o mesmo. O envelope fechado não ostentava qualquer nome, aqui confia-se na contabilidade divina, ao contrário do chefe das coisas, que puxou o saco preto e num certo desmazelo o amarrotou, talvez para mais tarde anotar o nome e a quantia. A cruz chega a mim numa roda de devoção que muitos transformaram em religião, sem intenção de religar o que quer que seja. A fé é coisa que não se veja, mas beijo, ficando para o fim por pudor, e dor, sustendo um pequeno emaranhado de ondas que teimam em assomar à praia das pálpebras, encosto a boca aos joelhos frios e afasto-me, com saudades Tuas.
Espreito-os por cima do muro. Seguem caminho abaixo, a sineta badala silêncio, o âmago de um cansaço suado. Fico sozinho, comigo a meu lado.
Quando a solidão se prepara para barricar-se no sobejar de palavras onde em silêncio afogo a minha voz, sinto uma mão no ombro, viro a cabeça. A olhar para mim, além do mar que me cresce por dentro quando me lembro das oliveiras, uns amendoados castanhos pequenos luzeiros orbitam-me e por dentro do que sou alcançam-me numa espécie de luz. És tu, Jesus?


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