Sede

Crónica de domingo na Bird Magazine.

Só ouço o cascalho ranger debaixo dos meus pés. 
Os godos disformes fazem-me por vezes resvalar e tropeçar no ar como se inebriado me deixasse levar pelo vento e este, como sempre faz com todos os sonhadores, me fosse atirando contra as esquinas do tempo enquanto procuro aquilo pelo que o tempo me fez vir aqui.
Deixo cair a caneta e o bloco. Na verdade caem os dois, tenho o vício de trazer a caneta presa ao fio do caderno, vergo-me com o que as dores de costas me permitem e apanho-o novamente. 
Eu e as palavras somos como um ioiô, juntas e afastadas pela gravidade que se enrola nas mãos e atrai ou repele as letras para, suspeito, simples deleite de me visualizar atrapalhado com a cadência sincronizada e, por vezes, pendular dos pensamentos.
Era o cascalho, dizia atrás, que me ouvia os passos falheiros enquanto eu subia o caminho, ladeado de uns muros de granito feito com pedras sobrepostas quase ao acaso, mas como em tudo o que existe debaixo das nossas pálpebras, nada se aleatoriza, ali havia traços ainda que não fossilizados de mãos e suores alagados de cansaço onde o musgo se encostou e cresceu para, vaidosamente, reter minúsculas gotas de orvalho que reflectem o céu e o meu olhar, como para abrigarem por ali pequenas aranhas que por lá fazem vida, alheias à minha vida e passagem. Aqui e ali um bosteiro, moscas que se debatem em zangadas zunidelas sobre o abatido resto de palha que algum exemplar vacum evacuou. 
À terra o que é da terra. Do resto de uns far-se-á vida para outros.
E não me bastavam exemplos para o olhar apaixonado sobre a bosta, mas o calor que se avizinhava assim que o Sol se erguesse acima dos plátanos fez-me alçar pernas e andar lesto no resto do carreiro, até porque o godo terminava e substituía-se por uma manta de pedras polidas desordenadas e desconexas, sem o trato fino de ourives dos artífices da calçada portuguesa.
Passo por um contador de água cuja portinhola batia no plástico baço comido pelo Sol. Acredito que ninguém lá passe para medir o consumo, até porque ali ao lado, cristalino, puro, segue um regato no meio de um rego, ora de pedra, ora de terra, onde me parece que os animais matam a sede. Ora eu, nem mais nem menos animal que os outros, porque o portão está aberto, talvez nem feche tendo em conta o pender abandonado apenas de uma dobradiça feita de borracha escura, faço-me entrante e sigo pelas pegadas do gado, fugindo daqui e dali de largos poios, até chegar ao regato.
Pouso o caderno, a caneta escorrega e cai à água. Deixo-a ficar, terá sede tanta quanto eu. Encosto os joelhos na pedra e debruço-me até a água que passa a golfadas largas me molhar boca, beiços e nariz, fazendo-me engasgar, tossir, cuspir e por fim rir, à gargalhada. Há sempre qualquer coisa de criança em nós que faz expelir bofes e tosses para que o ar se enfie até aos pulmões e se hematose para que o mundo em nós vive tal como previsto, digo eu, que nem percebo nada disto.
- Olhe que a sede mata. – Ouço aturdido e assustado e por pouco não me faço gado e não deixo cair ali mesmo partes bostadas de mim.
- Desculpe. Estava com muita sede. Vi o portão aberto. Entrei. Bebi. – Respondi curto, rápido, com estes mesmos pontos finais que a terra há-de comer.
- Lá por estar aberto não quer dizer que seja maninho oh freguês.
- Eu pago-lhe a água, desculpe.
- E a água lá se paga? É de quem a beber e a deixe ficar para sede tiver. Ora essa.
- Desculpe. Mas fico em quê? No beber ou no ter bebido?
Solta-se uma gargalhada daquela cara feita de pele enrugada onde descansava sujidade e pelos barbados onde a navalha não chegava.
- Vá lá homem, estava a brincar consigo. Que o traz aqui?
Desconfiado e assustado, engulo o medo e atiro qualquer coisa como isto
- Eu nem sei, vim por aí atrás de alguma coisa e encontro-me aqui, pés na erva, mãos na cintura e cabeça debaixo do chapéu.
- Esse caderno é seu?
Aponta para o que estava em cima do murete, com a caneta ainda a bailar na água como um anzol à espera de espécies piscícolas, sem medo de se afogar.
- Sim, é.
Apanho-o, a caneta pinga, meto-o debaixo do braço e começo a andar. Vejo que a minha altura é bastante superior à dele faço-me maior com dois inspiradelas valentes na cavidade pulmonar e passo meio tolhido de medo meio tolhido de cagaço, não fosse lá sair daquelas mangas velhas e gastas uma qualquer navalha ou espigão ou qualquer outra coisa que não sei o nome mas que assusta na mesma.
Ele desvia-se. Passo por ele.
- Bom dia e obrigado.
- Bom dia. Olhe lá, que escreve você?
- Coisas.
- Essas coisas lêem-se?
- Era isso que queria, que alguém as lesse.
- Você não as lê?
- Claro, ora que caral... – Quase se me destravava a língua sem querer.
- Então alguém as lê. 
- Não é isso. – Paro com a cara um pouco voltada para baixo. – É diferente.
- Posso ler?
Olho para ele. Não sei que me surpreenda mais, se aquele velho carcomido pelo tempo saber ler, se alguém perguntar para ler o que escrevo. Volto para trás, dou meia dúzia de unidades de passos e entrego-lhe o caderno. Ele pega-o, coloca-o debaixo do braço, encostado ao sovaco.
- É isto que quero ler. – E coloca aquelas mãos ásperas na minha cara esbranquiçada, parecia que o inverno tinha chegado mais cedo, olha-me fundo nos olhos, tão fundo que tive medo que descobrisse coisas que nunca tive ousadia de escrever. 
Permaneceu ali uma quantidade de tempo que não sei quantificar, teria sido um momento ou algumas vidas? Mãos ásperas na face e um olhar que se permitia ver-me, a mim!, pelos olhos dele.
- Faltam-lhe uns parágrafos e vão dizer que a pontuação não deve ser feita assim, mas olha que a tem quase toda escrita.
Baixou as mãos, raspando-as pela minha cara, piscou os olhos humedecendo-os, tirou o caderno debaixo do braço e colocou-o debaixo do meu perante a minha perplexão e catatonia. Começou a descer o carreiro, deixando o portão de madeira aberto como sempre deve ter estado, enquanto eu me perguntava o que é que eu teria quase tudo escrito? Vejo-o parar, voltar-se, olhar-me, sorrir, dizer:
- A vida.

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