A ti leitor

Crónica de domingo, na Bird Magazine.

O quotidiano pura e simplesmente não me chega para todos os dias que quero viver.
De noite, preso apenas pelos fios que vão da pequena cruz de madeira a cada membro do meu corpo, deixo-me escapar até onde me permite a lei da física e, aí, a flutuar com olhos num dos universos que compõem o multiverso interior, suspiro com saudades de uma casa no futuro com alpendre de poeiras estelares e vista sobre o presente.
Passageiro de um turbilhão, sabes leitor, ausculto as horas que passam com incontável curiosidade e de nada me socorro para te contar que nada te sei dizer ou opinar, eu gosto apenas de viver e, também, respirar.
A manhã trará os primeiros pingos de luz, é com essa chuva que a noite em mim se reduz.
Podia contar-te das subidas e descidas num só minuto de claridade, dos olhares olhados por detrás da retina, da admiração da simplicidade escondida atrás da cortina. Mas não, eu vou gastando a gravidade com os passos em torno de palavras e letras que jamais soube possuir porque, pasma-te, eram elas que me possuíam! Ainda que devaneie, este é o meu romance, as minhas mãos e o meu sangue. Por isso tenho-te trazido no meu colo, percorro as mesmas ruas do passado e vejo que lá já não mora o futuro pois as ervas cresceram por entre o empedrado, tens visto? Ainda ontem, ou há anos, subi a rua, dei um aperto de mão a um vizinho que me habituei ver grande e agora o grande sou eu, os braços apoiados num portão de ferro velho com tinta nova, o ladrar do cão surdo e cego de um olho, o sorriso… Ai o sorriso, o vislumbre da eternidade, a recordação de alguém que se foi daqui tenro na idade.
Isto é a minha crónica, ou o que sou, a diferença é fugaz, nada apreço ao custo do preço de tilintar nos bolsos trocados em forma de berlindes. Dizia-te, antes do pequeno desvio na narrativa, que ali no cima da rua, já depois de ter feito inversão de marcha no final e olhar agora pelo espelho retrovisor vi a minha cara, um pouco de dor, o reflexo de uns putos a correrem atrás de uma bola, o inclinado cimento da entrada da garagem onde ainda estão pousadas as nossas bicicletas, as bolas de ténis e de futebol, as caricas com cascas de laranja e cera de vela, os pedaços de tijolo vermelho com que desenhávamos as metas imaginárias, os baralhos de cartas e as velhas ferramentas de brincar quando sonhávamos que em grandes íamos ser homens de trabalhar.
Dei-me por ali aos eucaliptos, como me dou agora a ti, transparente no que não sei ser, por vezes escrevo-me na expectativa de gostares, sei lá, de por momentos sentires a porta por onde espreito e por ela entrares.
Sê bem vindo, ou bem-vindo, eu vivo de acordos feitos comigo mesmo, talvez por isso me sinta bem a escrever, deitado, no meu ermo.
Hoje, sábado, enquanto ao fundo o ruído branco se transporta e barra a tarde barulhenta da azáfama dos vizinhos, felizes, como eu, deixo-me languidamente sucumbir à parte de mim que te vê enquanto lês estas linhas e, esforçado, ter-te agora a sorrir
Enquanto eu, e também tu, não acordarmos deste dia que se esvai no tecto das vidas que temos vivido por cá, voluntária ou involuntariamente, deixo-te as minhas palavras que são a crónica de tudo aquilo que sou. E digo sou com vaidade, afinal, entre ontem e amanhã, hoje é a minha idade e é com ela que me deito a cada passo fora da porta da entrada, passando pelo alpendre, socorrido de um fio de ariadne prateado, por vezes manietado, na minha e nossa senda de percorrermos os destinos com a certeza que em tudo o que faço a distância de mim a ti é apenas um abraço.
Olha esta chuva que cai
silenciosamente
por entre as cores do Sol da manhã,
as pedras frias da casa firme
o odor a futuro que translucida no teu olhar.
Olha a placidez do branco no andar
os incontáveis amanhãs
nas letras fugazes que me aprisionam.
Olha a luz reflectida no muro amarelo
o espectro não visível na retina
pelos veículos que veiculam ruído.
Onde pernoitará agora a nuvem que ondula na parede?

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