Os reternizados
Crónica de domingo na Bird Magazine.
Olá
filho, Escrevo um dia antes para te poder dizer isto: Parabéns!
A
tua mão dorme aqui, a meu lado, embrulhada como sempre numa almofada, está tão
enroscada que pergunto se não existirá na sua codificação genética algum tipo
de ascendência genética com o bicho-de-conta.
Gosto
de te ouvir gargalhar com estas pequenas idiotices minhas.
Ela
já não deve estranhar o barulho dos dedos no teclado e nem a luz fraca do
candeeiro a deve acordar. Acredito que depois do dia de hoje, quando o Sol saiu
da toca pela primeira vez em vários dias, nem o gotejar das estrelas no zinco
barrento do telhado a faria abrir os olhos.
Escrevo
como se não soubesses disto. Claro que sabes. Se calhar até foste tu que
encomendaste um dia solarengo, com nuvens coloridas e sarapintadas de formas
que apenas a imaginação infantil pode moldar.
Paro
um pouco antes de retomar a escrita, este meu hábito de escrever apenas no ar,
sem grafar, faz com que me perca várias vezes na necessidade de retocar letra a
letra as palavras que se vão desvanecendo no meu olhar e, na verdade, só abro
os olhos quando surges aos pés da cama e, maroto, me beliscas os dedos para
acordar daquilo que nego ser o meu adormecimento.
Brincadeira
de criança é galho florido nesta estação Primaveril. E noutros apeadeiros.
Quase
esqueço que escrevi várias linhas antes e sai-me de novo um: Olá filho.
Andamos
o dia todo contigo, não sei se sentiste. Aliás, não sei sequer se nos viste.
Mas andamos, por aí, como se do alto dos teus seis anos fosses guia nesta
excursão muitas vezes sem sentido, sentindo que no afago a qualquer outro ou
outra que connosco se cruza, possas orgulhar-te do alto das tuas galáxias por
viver do amor que sentimos por ti.
Olha
lá, aí em cima também vais aprender a ler? Ou estas coisas são quase como as
vidas, que se esquecem quando se nascem e vamos perdendo anos e anos a aprender
aquilo que tão bem nos poderia ter sido dado, quase como os dedos das mãos, os
dentes, os abraços.
De
vez em quando a cortina onde projectam a realidade dilui-se, talvez por causa
de um invisível vento que sopra da vontade de ver além do que se sabe
vislumbrar. Aí sinto que talvez este sonho a que chamam vida seja de facto um
onirismo de onde sairemos quando pensarem que adormecemos, para sempre como
dizem.
Porta-te
bem (este recado é da tua mãe). Nada de andar de gatas pelo universo, com o
risco de berlindar um planeta contra outro, deixa as galáxias bem arrumadas
depois de brincares com elas e em caso de dúvida sobre em que dimensão entrar
pede ajuda a Deus, embora não se veja, ele anda por aí atento a quem se atenta.
Não
sei se tens visto, mas tenho-me esforçado por fazer o que pediste. Vou olhando
para os outros pirralhos e comportando-me da forma que queres, mas nem sempre é
fácil. Sabes bem que sou distraído e esquecido, por mim e por outros. Mas na
incompreensão do sentir, vou tratando-os como se eles fossem tu (e não serão?),
a falta de posse despoja-nos do que poderíamos nunca ter e isso, dizes-me tu, é
razão da rima entre as palavras dor e amor, podemos sempre escolher aquele que
nos faz sentir melhor. Escolho o amor e lá vou, como queres, sorrindo e brincando
com a garotada como se cada um fosse tu próprio. Dizes que na cegueira do que
sou posso encontrar noutros a tua cara ou os teus gestos. Sou crente, acredito.
Porque não haveria de crer na palavra de uma criança? Ou de uma estrela?
Já
és crescidinho. Agora, quando te levantares e depois de lavares a cara com a
luz que sai de uma estrela, vê se dás a mão ao teu irmão, não torças o nariz
quando ele te pedir para fazer alguma brincadeira mais infantil, ele precisa de
ti assim como tu precisas dele, já te imaginaste andar por aí sozinho sem a
companhia segura do que pensas ser? Isto de viver tem dessas coisas,
experimentar caminhos por onde nem sequer sabemos caminhar, mas isto vais
aprender caso existem escolas desse lado da vida. Já por aí andei, mas esqueci
tanto do que se aprende que cada dia aqui é um desfolhar de livros na ânsia de
aprender a ler cada vez melhor, as palavras, as pessoas, os tempos e eu mesmo.
Vai
crescendo em saúde, nas sombras frescas que permeiam o universo e onde um dia
já me levaste pela mão, de dimensão em dimensão, como se a própria vida fosse o
recreio onde brincas seguro e adulto nas meninices de uma ilusão.
Há-de
vir um dia em que ao fechar os olhos possamos estender-te os braços a pedir que
nos pegues ao colo e, desse lado, crianças novamente nos tomes como filhos teus.
E de Deus.
Agora,
filho, vou dormir, o cansaço apega-se daqueles que não se cansam de sentir. Vou
pedir-te, mais uma vez, que não entoes estas palavras um pouco sem sentido. Por
vezes há que escrever assim, sem sentido, para se poder depois anagramar os
espaços em branco e encontrar no vazio deixado pelo renascer das vidas as
palavras que combinamos ler. Pouco leio agora, deve ser porque vejo mal quando
estou por detrás de uns olhos emudecidos.
Obrigado
pela estrela cadente, se calhar foi sem querer, talvez tenha sido o teu irmão que
deitou a chupeta de novo para o chão e resvalou aos trambolhões como uma pepita
incandescente no céu nocturno. Faço-me acreditar que foste tu, na eternidade, a
experimentar o lápis com que se escrevem as constelações e a garatujar as
mesmas palavras que me saem da boca agora: Amo-te.
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