Muda dança
Crónica de domingo na Bird Magazine.
Não
existem, pelo menos palpáveis, necessidade súbitas de poupança energética que
nos façam valsar um passo atrás no tiquetaqueado tempo que vamos pivotiando na
ponta dos dedos. O tempo, essa invenção dimensional, vai-nos presenteando com a
ilusória crepusculosidade de dias que se parece amontoar no vago espaço entre
as orelhas humanas.
Ainda
ontem trajava a mochila às costas e, já hoje, ou, na exactidão do relato,
amanhã, terei como companhia na travessia até casa os fugazes pirilampos alados
que se movimentam no zénite na rapidez de milhões de anos luz que medeiam os
milímetros que separam o agora e o daqui a pouco.
O
relógio atrasa-se, ou atrasamo-lo, mas acredito que ele poderia atrasar-se até
infinitamente parar no momento exacto em que o tempo, acompanhado pelo eterno,
descansaria cansado nos braços de um criador que o apraz fazer-se sentir
criado, não na subserviência, mas no acto de ter sido criado no propósito que
apenas um criador terá e, não obstante curiosidade, não é permitido saber à
criação e à criadagem.
Contigo,
tempo, no descalçado horário, virá arqueado um Outono adulto que trará pela
mão, chutando o tapete colorido de folhas caídas que se estende no solo feito
de nós, um petiz Inverno pouco habituado e fadado a telúricas tradições,
querendo e crescendo saraivar e trovoar o quanto possa até se render ao
novamente colorido trajecto da sua irmã, Primavera.
Os
dias ficam mais pequenos, dizem-me, e eu sorrio. Pequenas ficam as pessoas, e
as espigas que não são colhidas, porque os dias, esses, encerram ainda na sua
inocência mãos cheias de caruma que se atiram para uma fogueira enquanto outras
carregam golpeadas castanhas, ensalgadas, e as vazias, mãos, voltam a palma
para o lume e, ocasionalmente, esfregam-se no rebuliço de um calor que lhes
aquece, dentro, o erguiço.
Vamos
tão rápido que até a frequência que nos pauta os momentos, o segundo, chega
primeiro e faz-nos abrandar, tenta suster-nos não pela rédea, curta, mas pelos
fugidios compassos entre o tempo em que nos sabemos e em que nos aprendemos,
para nos direccionar para a ombreira de lousa, para a velha pia baptismal que
faz agora a vez de lavatório, para nos baixarmos um pouco ao empurrar o velho
portão que nos saúda resmungando no rangido quando lhe levantamos o ferrolho e
o abrimos para entrar, ainda de cabeça baixa, não nos fuja a altura para uma
parede deslocada pelo peso dos dias que descansaram no telhado. Ali, com a hora
extra, permaneceremos sem dizer nada apesar das falas, dos risos, das castanhas
que estalam e do pequeno puto que as segura na mão, quentes, e antes de as
descascar agradece ao tempo o tempo que ele teve para, com os dois pés,
debulhar o ouriço e tirar lá de dentro, não sem antes se espetar num espinho,
uma castanha castanha.
Há
uma propositada intenção de duplicar, sentidos e frases, acredito que seja
dele, do tempo.
Os
dias vãos nascer já altos, as noites cairão cedo e já formadas de estrelas,
arrastando sobre todos uma espécie de película apaziguadora, a paz que o frio
nos faz procurar no calor de casa, da roupa ou, nos mais felizardos e atentos,
nas pessoas.
De
quando em vez, vá lá eu saber se é do tempo, da estação ou não, invisíveis
golpearão as persianas e as portadas com arrufos ventosos e água condensada que
escorregará no vidro como os dias por entre os meus dedos. Este tempo é um
tesouro que só valorizamos depois de perder. Assim, ainda antes de o vermos
contornar aquela curva ali ao fundo, há quem lhe chame destino, a providência
humana faz-nos relembrar na infinidade de milésimos de segundo que existe entre
cada inspiração, há quem lhe chame hora, que mesmo sem tempo há um tempo que se
avizinha e nos quer ver, na pacatez de uma noite invernosa, a suster
corajosamente o tempo, escondendo-o atrás das costas como se fossem a mais
preciosa castanha, neta do outeiro.
Este tempo é nosso, façam-no de muda dança, inteiro.
Este tempo é nosso, façam-no de muda dança, inteiro.
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