Amadrugadecida
Crónica de domingo na Bird.
O dia amanhece cedo, não me tinha
apercebido da algarviada da passarada assim que a claridade se vai imiscuindo
montanhas acima, atenuando o brilho mais tardio de estrelas tímidas e entrando
pelas frinchas do resistente estore que cobre a janela do meu quarto.
Acredito-me capaz de madrugar e deixar
alcova descoberta enquanto vou travar uma longa e salutar conversa de pés
descalços com os torrões ainda quentes, nestes dias que se fazem perdigueiros e
arremessam apontados os tubérculos que se colhem ainda por colher.
Começo a lutar, em pacífica incursão, de
bolhas nas despreparadas mãos, com o suor que me pede permissão para brotar,
desfolhando ambições de meninice enterrada de cu no chão, a roçar leiras com
pequenos brinquedos dos quais já nem a cor recordo.
Por mim, aqui, a caminho do meu caminho,
vou cantando baixinho o meu hino, admirando-me com a simplicidade pacata do
nascer do Sol, o ruborescer das nuvens, a pitalhada no ar a chilrear, o barulho
dos chinelos nos trigonométricos paralelos da estrada e as mãos frias de
encontro ao vento quente.
Pode alguém ser mais feliz?
Talvez por esta simplicidade me esqueça
do valoroso cronical que deveria redigir, mas não me parece que a minha opinião
possa acrescentar o que quer que seja ao que me rodeia, vou fazendo o
comentário para mim mesmo, vendo como a realidade difusa se tenta materializar
à minha frente e eu a fito sub-repticiamente golpeando formas nas minhas pernas
e esgravatando as unhas negras e dedos gretados nas costas transpiradas.
A realidade.
A realidade é tudo o que me faço por ver
e dessa não resta opinião ou comentário, nem tão pouco a palmada nas costas que
poderia encorajar o desengasgo das palavras e da própria vida que possa estar a
arfar presa entre a laringe do que digo e a faringe do que respiro.
O dia faz-se quente, viva a novidade do
Verão, verão que dias mais serão assim um pouco como as pessoas quotidianas,
previsão de bom, precipitação de menos, restarão sombras de mais, vestidos de
menos, que isto de temperatura vai como o que aperta, quase quase segura.
Pela tarde, ainda cedo, deixo que a terra
fendida se emprenhe de luz enquanto até os mosquitos e escaravelhos se enterram
para sobreviver ao telheiro.
Recolho-me ao combalido dia que vai
ainda a meio, tentando reter o amanhecer, mas este vai-se escoando pelos olhos
que me buscam como os que busco no pintalgado céu nocturno enquanto percorro as
escarpadas avenidas de um bairro.
A noite caiu, creio que também eu, com a
ferocidade de uma semana que aparecerá trazendo resquícios de sonhos
desacabados.
A porta abre-se.
Saio para a rua e esta está negra como
todas as outras, nada de brancuras como anunciado, mais uma vez a previsão saiu
como as pessoas, de menos.
Enquanto faço o possível por caminhar
hirto, esquecendo a socialidade, ergo a face e guio-me pelas estrelas, juro que
faria deste caminho o meu trilho se pudesse fazer do meu dia o piscar de olhos
que vai do anoitecer ao amanhecer, privando-me da claridade atomizada que vai
sucedendo-se unilateralmente, sem grandes diferenças entre o acreditado e as
crenças.
O céu – como queria eu estar agora em
Trás-os-Montes – esteve já mais escuro, mas como a Lua ainda não fez o favor de
se levantar (deve estar com o Sol a namoriscar) o brilho das pequenas centelhas
ascendidas, por quem acendidas?, vai chegando para me manter acordado para as
minhas divagações.
Distraio-me apenas pelas fugazes e
ondulantes luzes das velas que alguém terá deixado no cemitério.
Andando um pouco como que peregrinando
uma fé que perdi vejo o fumo deixado pelas voadoras embarcações a que chamam
aviões e pergunto-me o que seria do mundo sem nós, atilhos, que vamos atando a
ânsia de nos sentirmos em casa apesar de não sabermos que moramos dentro de nós
próprios.
Sabe a pouco, um pouco como o dia, tudo
o que carrego agarrado aos passos, mas de mim o mais coerente relato é este, sobre
o dia e a noite, o calar e o falar trôpego de um soluço que se vai sumindo à
medida que me saem dos olhos suores que transpiro desde que nasci.
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