Páscoa
Crónica de domingo na Bird Magazine.
Sons de sinos, pequenas badaladas que vão percorrendo as ruas empedradas e sorridentes.
Sons de sinos, pequenas badaladas que vão percorrendo as ruas empedradas e sorridentes.
Ele pega-te na mão e traz-te pelo céu, viajando de raspão pelo arco-íris que teimosamente teimas em colorir a cada manhã que acorda molhada.
Corres sem pisar o chão, volitas entre as opas vermelhas, o crucifixo dourado, as flores que o encimam e reparas que ao teu redor há toda uma natureza que parece ressuscitada.
Chama-te a atenção do petiz que segue ora à frente, ora atrás, quando o cansaço o assim obrigar, badalando-se ao som da sineta. Vai orgulhoso da tarefa e tu, que nunca foste de badaladas, vestes-te de arco-íris e vais colorindo o caminho, olhando à volta, percorrendo os olhares, cheirando as flores e lamentando a sua sina. Pensas que mais valeria plantar as flores de vésperas pelas ladeiras onde este passo passasse, fazendo de todo o caminho não um tapete, mas uma colina florida, apenas até te perceberes que as colinas, canteiros e ladeiras deram origem a muros e outras fronteiras. Pedes desculpa às flores, distrais-te com uma formiga e o seu caminhar errante e tens que voltar a correr para alcançar a procissão quando Ele assobia e levanta o braço fazendo sinal para que avances.
Vêm aí, vêm aí!
Alguma criança entra a correr no portão, deixando-o aberto.
Prende primeiro os cães!
Volta atrás, fecha o portão, prende os cães, que ladram de medo e sobreaviso, tentando alertar a quem lá vem que, por via das dúvidas, humano não deve acreditar em humano, isso é para os animais. Bicharada presa, abre o portão, a mãe chega-lhe um saco de plástico com pétalas, folhas e flores completas, que ele espalha no chão sem a preocupação de estabelecer um padrão e corre para dentro de casa apenas a tempo de descalçar os chinelos e enfiar os pés numa branca imaculada sapatilha com fecho de felcro. A mesa posta atrás de si, de onde, sem ninguém ter reparado, tirou uma amêndoa de chocolate e levantou ligeiramente o pão-de-ló descolando-o do papel, debicou uma pequena parte, encostando-o de novo ao papel. Pelo portão aberto, calcadas já as folhas, flores e pétalas, entrou o compasso, a sineta a cantar pela alegria de quem a transporta e os homens, de boa-vontade, acreditemos, entram na pela porta da sala, um a um, cada qual sua função. Atrás deles Ele chama-o novamente, tinha ficado entretido com as pétalas tentando movê-las com um sopro que não venta, levanta-se a correr e é a correr que a opa com sete cores sete vezes ondulou até Ele, já dentro da sala, lhe pegar nos braços e o colocar aos ombros para que presencie.
Um homem, um dos que tem opa vermelha desbotada, entrega a outro homem sem opa um papel e começa a ler umas palavras. A família, alinhada, de roupa velha estreada, com sorrisos fáceis e um rosto cheio de aparência, repetem no final, quando o outro pára de ler e ergue, solenemente, os olhos. O chão tinha já algumas gotículas de água, benta dizem, embora não vente e por isso o petiz, de sapatilha nova, não percebe o que é isso da água ventar, olha para o seu pé direito e, triste, vê o imaculado calçado branco com uma pequena nódoa da água que lá caiu. Pode ser que vente e a nódoa saia.
Um dos homens ergue a cruz com as flores e aproxima-a de cada um que ora beijando os pés, o peito, as pernas ou simplesmente beijando um dedo e tocando levemente os pés pregados na cruz, pensa por onde terá andado a cruz, o quase partir do dente ou o disfarçado virar da cabeça no último momento, a tempo de encostar apenas o queixo à cruz.
As palavras trocaram-se, a senhora, que há momentos estava de avental na cozinha, olha agora para o marido, que se vira para trás e pega no envelope onde está o nome da família, entregando-o a um dos senhores de opa com um saco escuro.
Alguém é servido?
O triquete da sineta olha por uma vez para a mesa, com os olhos cheios de vontade e uma barriga que lhe pede para dizer a verdade e aceitar. Mas ninguém é servido e isto faz esquecer momentaneamente que a sapatilha nova tem uma marca de uma água que venta e que, até, um dos pés lateja e de tão belo calçado não teve coragem de dizer à mãe que um pé apertava, porque a mesa ficaria ainda com o mesmo número de amêndoas, as bolachas sortidas, o pão-de-ló e aquele vinho que deixam provar apenas nestes dias e quem tem nome de cidade.
Posso comer agora uma?
Perguntou ainda o compasso não tinha arredado pela porta, voltando-se todos com um sorriso, rindo-se mais da ignorância do que da candura, enquanto a mãe sorria com um rubor de vergonha e replicava.
Claro que sim filhinho, estão aí para comer.
Os risos sucedem-se, ele leva uma bolacha de chocolate à boca e um dos senhores de opa dá um pequeno empurrão à opa branca, que pelo susto sacode o braço e faz a sineta tremer de solavanco e dá azo para que se volte para o portão e comece a caminhar, com a barriga a resmungar, prometendo-se a si um bom pacote de amêndoas com o dinheiro que ganhar a roçar a erva no caminho do vizinho. Todos caminham para fora do portão, os cães ladram ao barulho da sineta, as flores, pétalas e folhas são calcadas uma vez mais e ficarão no caminho até que o vento, verdadeiro, as leve para outro local.
Na rua, mais alvoroço, portões que se abrem, flores que no chão caem.
Ele, que só tinha dado uma dentada na bolacha, saboreava o desfazer saboroso do cacau com a crocante bolacha amortalhada numa qualquer linha industrial e olhava para o resto da bolacha, comparando-a à meia-lua que tinha visto no dia anterior. A mãe fecha a porta, vira-se para trás e enquanto despe a blusa dá um calduço ao rapaz.
Que seja a última vez que me envergonhas à frente dos outros! Ainda por cima em frente a nosso senhor! O que pensarão? Que não te deixo comer noutras vezes?
A outra metade da meia-lua foi engolida junto com a vergonha e uma lágrima enquanto a mãe, praguejando, passava o avental pelo pescoço e desvanecia pelo corredor até à cozinha onde assava o resto do bicho que tinham comprado morto.
Olhando para a mesa, trincando o resto da bolacha, pensou que não bastaria já terem-No crucificado uma vez, porque razão teria que ter a cruz de ferro já com Ele soldado à mesma e, como tal, sem ter modos de fugir, os pregos nos pés e nas mãos?
Chupou a ponta dos dedos e garantindo que a mão não tinha chocolate, meteu-a por dentro da camisa e tirou um pequeno crucifixo prateado onde, previamente e às escondidas, tinha raspado pregos e cruz de espinhos, com cuidado, tendo amarrado um pequeno farrapo branco no peito onde pareciam ter-Lhe enterrado uma lâmina, e fechando os olhos deu-Lhe um beijo, rindo-se depois atrapalhado por não se ter lembrado de lamber os lábios, que ainda tinham um resto de chocolate. Limpou o crucifixo, fez-Lhe uma pequena festa e guardou-o novamente, enquanto ouvia ao longe o barulho da sineta e pedia um desejo secreto.
O compasso foi sinetando caminho fora, diz-se que leva a boa nova, mas ela, a nova, boa, vai habitando em cada um que se preocupa de igual forma com o destino da vida como com o destino de uma folha arrancada à terra, para que outros a façam de tapete.
De opa colorida, já no chão, começam a caminhar também, no encalço do compasso, dá-Lhe a mão e não sente a mão calejada e cicatrizada de antes. Olha para Ele, que lhe sorri e pisca o olho, passando a mão no peito, agora sarado.
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