Poro do Sol

Crónica de domingo na Bird Magazine.

Vejo o por do Sol várias vezes por dia, quando vou de carro e ele se esconde atrás de um monte ou de um amontoado de edifícios, mas nada se assemelha a quando caminho num local qualquer, preferencialmente um pouco a subir e, se puder escolher, que tenha terra e cascalho, para eu sentir as pedras comprimirem-se e esmagarem cascalhando-se umas nas outras, num sussurro que comparo ao bater do meu coração, vulgo músculo que por vezes esqueço possuir.
O caminho ligeiramente inclinado, a minha perna com dificuldade em esticar refugia-se da dor, fazendo-me mancar e, até aqui, este balancear me faz sentir, por breves momentos, como que embalado pela temperatura amena, estranhamente amena para esta época do ano.
A recta longa, para quem se desloca a pé, convida-me a alinhar o caminhar com o caminho, fecho os olhos, o Sol bate-me na cara, aperto o casaco e coloco as mãos nos bolsos. Por momentos, caminho como se ascendesse a algum tipo de estágio intermédio entre esta vida e uma outra, qualquer, por aí, onde quer que o vento nos leve quando a vida se cansar de nós.
Aproveito cada momento para fechar os olhos, alinho-me novamente com o caminho, continuo a mancar e a perpetualidade da dor assusta-me.
Somos frágeis, sempre frágeis.
Novamente de olhos fechados, já depois de caminhar, aproveito para me encostar a um muro e sentir o calor que emana da pedra.
Será que os muros fecham os olhos para apreciar o Sol?
Ou ficarão como eu, a desejar ser nuvem para poder perder-me na frontalidade das pressões, ser peso sobre a terra, mais que a terra sobre o chão que a sustém, como se a órbita que obriga a compreensão fosse tão elíptica quanto a triangularidade santíssima que me faz adormecer a cada manhã quando toca o despertador?
Pronto, vacilo silabicamente, confesso a minha aspiração, a poder caminhar sempre de olhos fechados, sentir os pés lentamente ascenderem por uma escada invisível, apenas porque não abro verdadeiramente os olhos e continuo a pensar ver uma realidade matizada, e seguir universo dentro já depois deste sistema planetário, sempre de olhos fechados, para assim poder ver o Sol interior que habita algures fora de mim e se esconde nos recônditos olhares animais e hominais quando abro os meus olhos.
Os dias curtos fazem-me encurtar a caminhada.
Começo e termino uma frase como quem busca um esconderijo onde poder armar a sua fogueira, cobrir-se com uma velha manta de trapos, adormecer e aí, de olhos cerrados, poder continuar a admirar a astralidade solarenga que tanto procuro enquanto, vadio, um canito qualquer se aproxima e fazendo-se de convidado se deita a meu lado.
Confesso que as palavras me dão conforto e também refúgio, nelas caminho de olhos abertos sempre para poder narrar o que vejo de olhos fechados.
Na neologisidade encontro os tijolos com que tento construir o meu mundo, mas apenas consigo escrever o que consigo desenhar daquilo que imagino, pois onde estou não tenho mão que obrigue os dedos agarrarem uma caneta, ocupados que estão a contar as estrelas para me dizerem, animados, como petizes em resposta pronta na carteira de madeira da escola da vida, quantas estrelas tem deste lado da vida.
Caminho, sempre, ainda que repetidamente, para ir ao teu encontro e, aí, ciente de nunca ter abandonado o meu lugar, descobrir enfim a luminosidade que procuro e ouvir, ao chegar-me perto dela, feliz, dizer-me “abre os olhos, chegaste a casa”.

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