Fainas

A faina da crónica, ao Domingo, na Bird Magazine.

A doca atarefa-se como sempre o faz quando os barcos, já depois de ancorados à esperança da faina tormentosa se transformar em palpável gratificação, descarregam o peixe que, sem culpa alguma, se vê enredado na rede e no pleonasmo. Os olhos vítreos são a janela para o local vazio onde um dia, ainda que inexplicavelmente, nadou uma alma. A correção diria que os peixes não tem alma. A introspeção diria que a alma não tem peixes. E eu, que transporto ao etéreo as vontades blimundanas, deixo-me ficar encostado à sombra do prédio, fitando o chão e as letras desenhadas pela trajetória retilínea da luz.
Teremos tanta fome assim que nos obrigue, dia após dia, a voltar a cavalgar um mar que se espuma de forma salgada, ver confiada a sorte nos ventos e marés, ter os dedos gastos de rodopiar contas de um rosário invisível? 
Indiferente a toda a azáfama e também a mim, que me apoiava à sombra e me imiscuía pela penumbra, a Terra vai andando de terra em terra que é o vácuo orbital onde permanece, sem direção ou sentido, mudando de posição e estendo sombras onde antes eram penumbras, penumbrando novas pedras, azulejos, calçadas, asfalto, grelhas de esgoto, velhas beatas inanimadas e o tradicional lixo, ornamentalmente bordado a qualquer solo que pisemos. 
Viro a cara ao ouvir e, depois, ver uma pequena carrinha soluçar, tossindo um fumo branco e, depois, parar quase ao meu lado. Acredito que a sua cor já tenha sido branca, no entanto, salpica-se de ocre como velhas sardas a quem o tempo se incumbiu de tatuar profundamente na carenagem. Imobiliza-se com um saltinho, como um soluço, como se pedisse perdão por parar sobre a grelha em ferro fundido. O polícia, em bicicleta, deita um olhar reprovador ao aspecto, mas o olhar rápido pelo canto inferior confirma a validade dos dísticos e, a espreitar pela porta podada na parede cinzento amarelada da taberna, o piscar de olho do taberneiro confirma que esta é situação para dispensar.
A porta abre-se, um pé grande calçado por uma moderna sandália réptil verde com olhos cinzentos. Outro pé no chão e o levantar abraçado à ombreira. Bate a porta com delicadeza viril, como se o tempo (e eram certamente oitentas medidas de tempo naquele corpo grande) tivesse perdido a acutilância do toque com conta, peso e medida. Vai lesto na vagareza do corpo que parece habituar-se ainda à posição vertical depois de, deduzo, longa viagem ou tempo sentado, alcança o outro lado, encolhe-se entre si mesmo e o autocarro azul e branco enquanto este passa apressado para, agora, abrir a porta com o cuidado pueril de quem em noite de núpcias eternas, como sucede com quem se permite amar todos os dias. As mãos gastas e enrugadas encontram-se e a custo ele, no esforço de puxar, e ela, no esforço de erguer, içam em esforço de faina a vontade de ir à doca encher as brancas cuvetes de alguns, deduzo, quarteirões de peixe variado. 
Quando voltaram, de mão dada, saio da sombra para visualizar melhor o palco onde se desenrolava a peça. Vejo que o polícia, embora parecesse preocupado em não o mostrar, apreciava a cena com um sorriso. A porta traseira da velha Renault Express abre-se na horizontal, não sem antes um bom abanão desprender a ferrugem das dobradiças ou, aqui é apenas a insolação a divagar, a acordar do sono a que parecem pertencer todos os que envelhecem de bem com a vida. O jovem que lhes trouxe as cuvetes, já depois de as pousar na carrinha, recebe animadamente uma gorjeta em forma de moeda, a mesma moeda que, sem que os velhotes reparassem, deixou cair no bolso do avental azul da idosa menos idosa do casal. 
Do lado da lota, algumas pessoas, perdão Pessoas, fitavam com um sorriso enternecido a cena que deduzo ser usual, tal o grau de cumplicidade e facilidade de gestos entre os intervenientes, as mulheres acotovelavam os maridos e apontavam com a cabeça, os homens encolhiam os ombros, um ou outro passava o braço sobre a mulher e a ternura que também veste quem nos gestos despe gestos cuidados para puder abraçar melhor as redes que puxa para bordo.
A porta da carrinha fecha-se, ele, novamente, abre a porta para que a companheira e companhia entre. Fá-lo a custo, deixando-se cair primeiro com cuidado e, já quando a distância ao banco o permite, com a força que a idade parece exercer nos corpos que acumularam trabalhos, fazendo a carrinha abanar. O estremecer da porta ao fechar faz cair um pouco mais de ferrugem. Quando ele entra, um pouco mais aligeirado que a esposa, agarra o volante com as duas mãos e sorri. Ela coloca a mão sobre a mão dele, fechando-a sobre a mão e o volante. Com a cumplicidade que só se atinge quando os dois corpos são parte integrante de um corpo apenas, e já nem este corpo se sente, fita-a. Levanta a mão esquerda e leva-a à face rosada, enrugada, quase curtida da esposa. Retira-lhe da frente da cara uma madeixa da cor do nevoeiro que se habituaram (invento) a sentir nas manhãs de faina. Com o grosso e torpe indicador raspa uma escama que luzia na bochecha já descaída. Dá-lhe um beijo tímido com o pudor de quem ama na inocência, liga a carrinha e arranca e é neste momento que me arrependo de não ter trazido o caderno para escrever a história.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Pessach

Torrada ou Maria?