Dias

Crónica de Domingo na Bird Magazine.

Feriu-se nas arestas da vida
ainda antes de nascer,
pulsou compassadamente
e esbateu-se...
Há existências que valem segundos
e horas,
gastas,
nas sombras puídas do cansaço.
Enquanto se amortalha o respirar,
um pouco mais de vazio
morre
sozinho,
nas ondas do falar
e do calor,
imenso,
constrói-se um prisma de gente
cujas sombras,
rebeldes,
ficam na noite
a aguardar...

Há dias assim, sem poemas nem contos, sem risos nem choros, apenas assim.
Enquanto algo me embala o corpo com os sentidos, eu deixo que a alma escreva um pouco. Sem máscaras, artimanhas, egoísmos ou esconderijos.
Há dias em que o mundo se fecha um pouco mais, em que a sede de viver passa por outras dimensões. Há dias em que sonho que todos os olhos se abram para sempre, como se todos rompessem a cortina espessa que os cobre.
Há dias em que nem mesmo todas as canções sabem compor um hino à humanidade. Porque a humanidade não se canta, não cala, apenas vive pacatamente no seu espectro, entre idas e voltas.
Há dias em que olho as minhas mãos e elas dormem, cansadas, frias, desamparadas pela água que corre sem me molhar.
Há dias em que o mundo deixa de ser mundo e é um ermo, uma ilha abandonada, desconhecida.
Há dias em que as vozes se calam para que eu contemple o vazio da surdez e a constância dos passos perdidos, das almas ausentes, da luz escura e sombria que contempla os seus frutos.
Há dias em que ambiciono poder retornar a mim mesmo.
Há dias em que este piano toca sozinho, pautado por acordes que sucumbem, que se perdem na amálgama de sonoridades obsoletas, que cativam e adormecem.
Há dias em que eu não sou eu, sou um poema ou um conto, alguém ou ninguém.
Há dias em que os olhos que miram a vida são opacos e lestos no julgamento.
Há dias de cansaço.
Há dias de Sol e Lua, de cantos e choros, de noites e noites que não morrem para nascer o dia.
Há dias em que o frio não me deixa escrever. Tenho frio.

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