Gaveta abandonada

in Bird Magazine.

Faço dos meus dias de ontem, porque hoje não me chega o dia, o fundo da gaveta onde percorro tacteando o fundo de um rascunho. Que me perdoem lascas que não escrevi.
Começo a viagem de regresso já a noite empurra o que resta do dia pelas montanhas abaixo. Ganha-lhe posição com umas estrelas mais fortes e, depois, fincada a parca luz da noite, sacode o dia, não sem antes este, numa saída de movimento poético, pincelar um pouco das abas da noite, em tons que só encontro nos meus sonhos ou nos raros momentos em que me deixo acordar entre um sonho e outro.
Já a chuva escorreu das nuvens e das resistentes margens verdes que dão o seu lugar a vegetação cor de Outono, para eu deixar que o meu corpo tome as rédeas da viagem, enquanto eu vou dar uma volta, por aí, recordando sonhos que deixei a secar nas eiras perdidas desta minha alma em forma de montanha.
Estou cansado, vá-se lá saber porquê, durmo poucas horas para aquilo que preciso... E talvez isto me permita ver rebanhos onde eles não existem...
O vento frio leva-me para uns anos atrás, alma de velho em corpo de criança, na traseira de uma motorizada, o ruído estridente cai do escape e cola-se desesperado ao vento, que me devolve o som em ruídos distantes. Agarro-me a este meu eu que me conduz, a face direita encostada ao blusão de cabedal, com aquele cheiro característico a pele curtida e molhada.
As mãos, geladas, apertam meus próprios dedos, como se tivessem medo de voar junto com o som da motorizada. Mas não, estou protegido, um corpo franzino esconde-se atrás de um outro grande e o vento, é sabido por todos, não leva crianças sonhadoras, apenas sons e ruídos.
Fecho por momentos os olhos, as lágrimas que o frio faz nascer embaciam por momentos o mundo lá fora e é nesse momento, em que as lágrimas servem de janelas para as luzes matizadas pelo Sol, que os olhos sorriem muito, fechando um pouco o mundo aos sentidos, apenas para saltitarem para o rosto e desenharem um sorriso grande na face.
O som da motorizada vai longe, pergunto-me onde vou agora, mas não me respondo, gosto de me surpreender e deixar embalar pelo aquilo que de inevitável a vida tem: a inevitabilidade de sonhar.
A Farrusca bate-me com a cauda nas pernas, em pé, à minha frente, aguarda uma ordem para eu a lançar.
À falta de ovelhas, pastoreio sonhos. Falta-me cajado, um curtido pelo tempo, pau de sobreiro ou uma vara qualquer, não sou esquisito, qualquer bocado de lenha dá para desenhar no chão, que não nas pedras, rostos e estradas que ainda não percorri.
Ah cabras que os pariram!
Sonhos inquietos, farejam e ocultam pastos onde nem sequer o tempo imagina! Vão saltitando e fugindo, ora voltando a mim, roçando nas pernas e esticando o pescoço para receber um afago. Alguns, mais velhos, seguem confiantes à minha frente, cientes que sei o caminho enquanto eu, desconfiante, sigo na peugada deles na esperança que eles me levem aonde nascem. Outros não saem daqui, da minha beira, parecem aguardar a oportunidade para saltarem para um dos meus desenhos na terra, olham desconfiados e com medo, há sempre um som de motorizada que o vento brincando traz, olhos esbugalhados e caminhar atento, na traquinice típica de quem acabou de se encontrar como sonho.
Pastoreio sonhos.
A Farrusca vai correndo, latindo, não deixando um sequer tresmalhar-se...
Um latido mais alto faz-me olhar em frente, a cauda continua a bater-me nas pernas, qual pêndulo esquivo, marcando a cadência do meu sonhar.
Abro os olhos.
A Farrusca deixou de abanar a cauda. Parece-lhe, digo eu, que isto dos cães é mundo pouco frequentado, eles que vêm aquilo que vejo e, muitas das vezes, aquilo que não vejo, parece-lhe, dizia eu, que algo desapareceu da frente dela, mas não, continuam ali, uns correndo, outros descansando e outros nascendo para a vida dos sonhos...
"Menina, não os deixes ir para longe!" sussurro-lhe e os olhos vivos dizem-me que compreendeu. Um afago na cabeça, uma cócega no ventre, ela fecha os olhos e é neste momento, em que a meus olhos os sonhos vão já longe, que ela os leva para o mundo dela, a salvo dos dias em que me esqueço das nuvens, dos sons no vento, de faces desta e doutra cara.
Pastoreio sonhos. Feliz.

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