(I) O chapéu

Há qualquer coisa de estranho com este tempo, com esta chuva... Está tanto vento que alguns galhos dos pinheiros caem, batendo nas janelas e na porta... Na porta... Já mais do que uma vez caem dos pinheiros e batem...

Olho para o meu lado direito e assusto-me, entra uma criança, muito jovem, talvez 9 anos, e fica a olhar para mim, com olhos traquinas, sorriso de esguelha e pequenino, com a mão direita apoiada na porta, chapéu vermelho, típico de lavrador, camisola de malha amarela e um nome bordado a linha vermelha: "Sonho"... Sonho... Que raio de nome... As calças parecem feitas de um tecido similar à serapilheira e os pés tinham umas botas toscas, velhas, nas quais adivinho um buraco na sola... Nas costas trazia uma sacola, espécie de pasta, parecia feita de couro, "muito" castanha, sem fivelas a apertar, tinha apenas um arame grosso e meio ferrugento...

Tirou a mão da porta e foi andando até se sentar a meu lado, na cadeira vazia. Enquanto se aproximava, deu para ver os olhos, cor de sonho.

É pequeno, mesmo muito pequeno, sentado na cadeira os pés dificilmente chegam ao chão, fica a balançá-los, lentamente, com os braços apoiados nos braços da cadeira e as costas que não encostam na cadeira, porque ainda não tirou a sua sacola... Puto estranho... Por fim falou:
- Bati tanto à porta, como não abrias, entrei na mesma...
- Entraste? Como? - Tinha-me esquecido deste pormenor, como se já não fosse bastante estranho entrar alguém que não conheço em minha casa.
- Pareces burro, não sabes que atravessamos as paredes?

Reduzi-me à minha ignorância e continuei a escrever no computador... Ele ia olhando para mim e para o computador, sequencialmente... Às tantas lá falei:
- Pensei que eram ramos de árvores a bater na porta...
- Oh, e o que achas que todos nós somos?
- Não percebi...
- Todos nós somos uns galhos de árvores, ondulando por aí, tentando agarrar-nos à árvore mãe, mas há-de vir sempre um vento que nos atira para longe, ao encontro das portas... Como a tua... como eu...

Continuei sem perceber o que falava, mas por vergonha calei-me...

Cansado de me ver escrever desceu da cadeira e tirou a sacola das costas, pousou-a no chão e, depois, sem eu esperar, sentou-se no chão, encostado à minha perna direita, pôs as mãos sobre os meus joelhos e pousou a sua cabeça sobre as mãos... Suspirou fundo... E pareceu ficar ali a dormir, meio perdido nos seus pensamentos de criança...

Parei de escrever, tirei-lhe o chapéu e afaguei-lhe o cabelo... Era sujo e grosso e cheirava ao típico fumeiro...

Sem levantar a cabeça, falou, num tom de voz mais adulto, pausado e muito calmo:

- Esqueceram-se de mim...
- De ti? Quem? - Tinha a cabeça a "1000", nada fazia sentido...
- De mim e de todos os outros como eu... Os que cá estiveram e os que estão para vir...

Parou... Parecia cansado, não fosse eu vê-lo criança e pensaria ser um idoso que me falava...

- Esqueceram-se de nós... Os como eu, que parti e os que lá ficaram, por aí, perdidos, espalhados pelos montes...

Parou novamente... Não só parecia, estava de facto cansadíssimo...

- Fico triste pelos que ficam, sozinhos... Somos cada vez menos naquilo que poderia ser um paraíso... Condensam-se cada vez mais em grandes aglomerados, em jaulas de sentimentos e emoções, não sentem isto – e apontou para a janela, que tinha sido atingida por mais um ramo. Curioso, a fala dele era sincronizada com o vento, com a Natureza - vivem imersos num mundo pequeno, mesquinho, que é a sua própria sepultura...

Parou novamente... Eu estava atónito, olhava para longe, vendo as nuvens escuras e as copas dos eucaliptos em frente, que bailavam ao sabor do vento forte...

- Os sítios onde vivem estão apinhados de gente densa, forte, que materializam o que pensam... "Cada vez está pior"... "Isto deve ser o fim"... - abanou a cabeça um pouco, negativamente - Como é triste ver tudo isto, rapaz...

Ter-me chamado rapaz, com um tom de voz tão familiar, arrancou-me ao meu devaneio... Prestei mais atenção ao que falava...

- Sabes... Bem, sabes... Nós somos o que fazemos de nós mesmos... Tens medo? Vais encontrar situações em que terás medo... És optimista? Então, as situações, fruto do teu esforço, serão recompensadoras... És optimista parvo? - Esta assustou-me... - Então serás apenas uma pedra perdida por aí, sem fazeres nada... És pessimista? Então castras toda e qualquer hipótese de eu ou outros te ajudarem no que sonhas... E acredita, tal como eu, há tantos por aí... Vão trabalhando convosco, para vocês, para todos, porque é assim o rumo natural das coisas, mesmo que vocês insistam em continuar assim, fechados, cegos, mascarados em frente ao vosso espelho...

Suspirou fundo, pesado...

- Falta-vos um objectivo maior, que não é o sobe e desce da bolsa de valores, ou o chegar do final do mês para receber e pagar as prestações de todas as coisas que não precisas, que te fazem sentir vazio... Não me interpretes mal, essas coisas são necessárias, boas até, mas dentro de uma hierarquia de necessidades e prioridades... Mesmo tu, que ainda te preocupas minimamente, confundiste o meu bater na porta com um galho ou um ramo ou qualquer outra coisa, que não te arrancava às tuas próprias sombras... Se te batem à porta, abre! Se te chamam, pára um pouco e olha para trás, vê quem é...

Levantou-se do chão, tirou a sacola da cadeira, pousou-a ao lado e sentou-se... Encostou a cabeça para trás, na cadeira, fechou os olhos e sorriu...

- Achas estranho?

Eu nem respondi... Estranho... Sei lá... Estava apenas a ouvir, sem julgar...

- Sim, é uma boa atitude, não julgues... - Fiquei surpreendido, parecia que me tinha ouvido os pensamentos...

- Sim, leio os teus... Aliás, não os leio, quando pensas liberta-os para o ambiente sobre a forma de energia, a tua energia, a tua assinatura... Estás a ver a importância que vocês têm? Onde estejas, tudo o que pensares, ficará lá, como uma assinatura... E tu, que queres fazer? Queres andar por aí, pensando e agindo com responsabilidade, com amizade, com amor? Ou preferes vaguear, perdido em ti mesmo, perdendo a paisagem e, quem sabe, a oportunidade de amar, de ser amado, de ajudar, de ser ajudado?

Abriu os olhos, pousou os cotovelos nas pernas, inclinando-se para a frente, olhou-me e sorriu.

- Quando te perderes nos teus pensamentos, quando fores preso nesta onda de pessimismo, de tristeza e drama, pergunta-te a quem interessará tudo isto? A ti? Não percas tempo com dramas, amortiza o impacto negativo das coisas, sê responsável pelo que pensas, pelo que transmites... Não te esqueças, o que pensas concretiza-se... Vê os teus sonhos, se sonhas, se vives no sonho, tudo isso ficará no mundo dos sonhos... Se sonhas com um mundo melhor, esse mundo melhor será apenas o teu sonho... Sê a mudança que queres ver, age de acordo com os teus ideais mais profundos, sempre com agilidade suficiente para veres quando estás errado e quando podes aprender algo mais... Vocês são curiosos, estranhos, uma raça interessante... São tão dicotómicos, de extremos, sem saberem viver no meio termo, dançando sobre essa ténue linha que divide o cristalizado e o mole demais... Ou são optimistas exagerados, inconsequentes, ou são pessimistas rabugentos, velhos trapos que conspiram contra vocês mesmos...

Abanou um pouco a cabeça e ficou a olhar para o chão.

- De que têm vocês medo? Para quê o medo? O medo é útil, como aviso, como incentivo para vocês melhorarem e prepararem-se bem para uma ou outra situação, mas nada mais do que isso... Esse medo é parecido comigo, aparece assim, sem contarem, apenas atraído pelos vossos pensamentos... E tal como o medo, muitos outros, que têm medo de ser felizes, de crescer em todos os sentidos, surgem e apegam-se a vocês, sentam-se a vosso lado e pensam convosco, às vezes por vocês mesmos... Mas se vocês já os percebem, os sentem, não reajam com repugno, não se fechem em vocês mesmos, pelo contrário, abram o vosso coração, os vossos sentimentos, os vossos pensamentos, para eles, para por uma vez na vida que seja, sintam que alguém os ama, incondicionalmente, que possam sentir e discernir, que possam seguir ou dividir, mas não fiquem parciais... Também não fiquem presos a isso, só têm que dar o vosso melhor e isso é muito fácil, não custa rigorosamente nada, excepto abrir mão do vosso ego, de vós mesmos... Não sejam alimento deles, não continuem a insistir, isso apenas gerará dependência...

Pousou as mãos nos braços da cadeira e ergueu-se... Deitou-me um olhar de amizade profunda que me comoveu. Baixou-se, apanhou a sacola e colocou-a às costas, dando um pequeno salto para a ajustar melhor e, de seguida, puxou a camisola para baixo, esticando-a. Meteu as mãos nos bolsos.

- Já vais?
- Sim... Está a chegar o vento que me leva para onde tenho que ir...
- Para onde vais?
- Tu sabes, eu e muitos outros que querem vir, vamos para onde tens tentado ir...
- Não, não sei para onde tenho tentado ir...
- Sabes sim, mas apenas tens sonhado com isso, passa à acção...
- À acção?
- Sim, à acção, sem agires, sê o que queres ser, mesmo que isso não se veja, mesmo que isso não venha no "jornal"... Se te libertares do ego, os resultados serão maiores, em maior escala... Há tanto por aí por descobrir e se poderem descobrir isso ao mesmo tempo que se descobrem a vocês mesmos... Hum, seria maravilhoso!

Disse isto, nada mais, ficou um pouco parado a olhar para mim e a sorrir...

- E o teu chapéu? Não o levas? - perguntei.
- Não, fica contigo, como recordação...
- Pois, recordação de alguém que nem sei se existe... Se é fruto da minha imaginação...
- E para que precisas tu de comprovação? Não tem piada assim?
- Não!
- Tem sim... Durante tanto tempo estiveram habituados a que pensassem por vocês, que decidissem por vocês que, agora, simplesmente, têm medo de decidir sozinhos, de viver sonhos... como disse, vocês são estranhos... - E deu uma gargalhada - Bem, o chapéu sempre pode ficar como uma desculpa para eu voltar aqui, percebes?

Piscou-me o olho e virou costas... À medida que ia em direcção à porta, desvanecia-se, como se fosse fumo...

Chamei-o, tinha tantas coisas, agora, para perguntar... Corri em direcção à porta, mas já não o vi... Voltei à minha cadeira e lá estava ele, a sorrir.

- Chamaste?
- Sim... Eu... - Fiquei calado, sem saber o que dizer...
- Então?
- O que faço? Quer dizer, como faço? - perguntei gaguejando, sem saber dar sentido e palavras aos pensamentos que me povoavam a mente...
- Olha amigo, onde fores leva esse chapéu contigo, eu estarei perto, sempre, não tenhas medo...
- Mas onde hei-de eu ir?
- Onde quiseres, não é maravilhoso?
- Mas onde... - perguntei com uma lágrima de desespero...
- Onde a vida te levar... Onde fores leva-te a ti mesmo, em pleno, algo há-se surgir e, nessa busca, não te esqueças que estás já no caminho que procuras... Fala e escreve sobre isto, sobre amar, mas sobretudo sê mais do que isso, sê mais do que falar... Age com a confiança de onde quer que estejas eu estarei por lá, abre os olhos e os ouvidos quando alguém falar, tens sempre muito a aprender com todas as pessoas que se cruzam contigo...
- Mas eu nem sei onde ir... O que falar... O que fazer...
- Não te preocupes... O que tiveres que ouvir ser-te-á dito tanto pelo homem do talho, como por um médico, tanto por um trolha, como por um engenheiro, tens é que estar atento... Já perguntaste tudo?
- Acho que sim... - mas pensei para mim mesmo "sei que tenho tanto para perguntar, tanto para dizer..."
- Sim, eu sei dessas dúvidas... Mas elas são o motor para a procura, para o conhecimento e são, também, uma forma de tu te perderes em ti mesmo, deixa isso, em vez de te preocupares com isso, preocupa-te em olhar à volta e aferir "o que poderei eu fazer aqui para melhorar isto?". Preocupa-te em deixar todos os locais onde passes melhores do que estavam quando chegaste...

Ficou a olhar para mim, a sorrir... Piscou-me o olho e disse:
- Tenho que ir...

Levantou-se, sem dizer mais nada, deu-me um abraço e foi embora... Peguei no chapéu dele e guardei-o no bolso, a sorrir...

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